terça-feira, 22 de janeiro de 2013


Sons últimos e água para as árvores

«Como é estúpido fazer planos para uma longa vida quando não se é sequer senhor do dia seguinte.»
Senéca

Últimas palavras

Um dilema moderno. O dilema que, por paradoxo, existe nas cidades mais desenvolvidas: sem cuidados paliativos domiciliários, como ter uma boa morte? Como ter uma boa morte em Lisboa, por exemplo? Voltemos à definição.
«Boa morte: 1. Morte tranquila, com o mínimo da dor. 2. Morte em que até ao último momento de vida se conserva a dignidade e a identidade. 3. Morte em que o moribundo tem os familiares junto dele.»  («Agora e na hora da nossa morte», Susana Moreira Marques)
O ponto 1 - «Boa morte: 1. Morte tranquila, com o mínimo de dor.»
Por norma, este mínimo de dor (pensando por agora só na dor física) é garantido por meios técnicos que habitam um espaço definido — o hospital. Como conjugar, então, esta dor mínima com o ponto 2 — manter a identidade? Como é que um doente mantém a sua identidade num quarto de hospital; afastado do seu espaço, dos seus objetos?
Muitas vezes o terrível dilema dos familiares é precisamente este: a) manter o doente no hospital — local que permite, em princípio, que ele viva mais tempo — ou b) tirá-lo dali e levá-lo para sua própria casa para assim poder ter a tal «morte em que o moribundo tem os familiares junto dele»? Mais tempo de vida ou morte mais tranquila, com mais salvaguarda da identidade e da memória afetiva — morte mais individual, personalizada, junto de familiares a quem possa dar o último conselho e de quem possa receber as últimas atenções. Os dois momentos-limite (morte, nascimento) em que o ser humano precisa de outro — de, pelo menos, mais um outro; e, nessas alturas, que terrível estender o braço e não tocar em nada a não ser em coisas metálicas! O último toque de um moribundo, pensemos nele, como tal é decisivo. Qual foi a última coisa em que o moribundo tocou? — eis uma pergunta relevante. Em que matéria, em que material ou: em que pessoa? A primeira pessoa que nos pega quando nascemos e a última em que tocamos, como tal é relevante. E, no segundo caso, pode resultar de uma escolha consciente, clara: quem escolhes para o último toque? Eis uma das decisões mais sérias. O moribundo, além do mais, quer falar e ouvir — como todos os humanos.
Dizer as últimas palavras para uma máquina, contar o último segredo de família a uma sala vazia, escutar ruídos metálicos em vez de frases e respirações — esta é uma das mais terríveis paisagens em 2013, para alguém que está muito próximo da morte.  E eis, enfim, o pedido básico desde que nascemos até ao instante último: querer ouvir alguém que fale, querer falar para alguém que ouça. […]


Gonçalo M. Tavares (2013). «Sons últimos e água para as árvores».
Visão, 1037, 17-23 de janeiro de 2013, 8.

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