quarta-feira, 23 de janeiro de 2013


Carlos de Oliveira

Uma Abelha na Chuva


O escritório do Medeiros, diretor da  Comarca, era escuro e desconfortável; uma vulgar secretária de pinho, dois ou três cadeirões com almofadas de palha, um quebra-luz de missanga na lâmpada do teto e montes de jornais aos cantos; cheirava a pó como num caminho de estio.
– Sente-se, faz favor.
O visitante sentou-se e, abrindo a carteira, tirou uma folha de papel cuidadosamente dobrada:
– Para sair no próximo número do jornal, se puder ser. Pago o que for preciso.
O Medeiros desdobrou o papel, desfez-lhe os vincos um a um com a unha enorme do polegar, a unha da viola, e pôs-se a ler. Daí a nada, erguia os olhos assombrado:
– E quer o senhor que eu lhe estampe uma coisa destas na Comarca?
O outro baixou o rosto inexpressivo:
– Exatamente.
Afastou a papelada da secretária para os lados como se lhe faltasse o ar, afeiçoou melhor os óculos ao nariz afilado, e na esperança de ter confundido as coisas começou a ler o documento outra vez. Mas não. Ali estava de facto exarada a tinta verde, numa caligrafia de mão pouco segura, a confissão pasmosa:

Eu, Álvaro Rodrigues Silvestre, comerciante e lavrador no Montouro, freguesia de S. Caetano, concelho de Corgos, juro por minha honra que tenho passado a vida a roubar os homens na terra e a Deus no céu, porque até quando fui mordomo da Senhora do Montouro sobrou um milho das esmolas dos festeiros que despejei nas minhas tulhas. Para alguma salvaguarda juro também que foi a instigações de D. Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho Silvestre, minha mulher, que andei de roubo em roubo, ao balcão, nas feiras, na soldada dos trabalhadores e na legítima de meu irmão Leopoldino, de quem sou procurador, vendendo-lhe os pinhais sem conhecimento do próprio, e agora aí vem ele de África para minha vergonha, que lhe não posso dar contas fiéis.
A remissão começa por esta confissão ao mundo. Pelo Padre, pelo Filho, pelo Espírito Santo, seja eu perdoado e por quem mais mo puder fazer.

Saiu da segunda leitura como da primeira. De boca aberta. Que um sujeito arredondasse um tanto os preços de balcão, percebia; que descesse a extorquir uns alqueires de milho aos sobejos dum santo, percebia também; que enfim, dando o real valor a uma procuração, vendesse meia dúzia de pinhais alheios, porque é que não havia de perceber se as tentações, com mil demónios, são tentações para isso mesmo? Mas lá vir confessá-lo em público, na primeira página dum jornal, francamente, entender semelhante coisa era para o Medeiros como teimar com a cabeça numa aresta de granito.
Encarou de novo o rosto gordo do lavrador do Montouro. Feições paradas, sonolentas. Havia porém um ar de seriedade naqueles olhos pouco ágeis, na linha branda da boca, no beiço levemente caído, na cinza das têmporas, que impedia o jornalista de concluir no íntimo, decisivamente: é um imbecil; e contudo seria difícil avaliar o caso de outro ângulo; claro que não ia imprimir a declaração sem mais nem menos: a coisa tem a sua gravidade, envolve terceiros, o homem é capaz de ser de facto parvo e pode a família aparecer-me depois com exigências, desmentidos, trapalhadas.


C. Oliveira (1994). Uma Abelha na Chuva. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora. pp. 5-8.

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