Da
cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade
Mia Couto
Quero, antes de mais saudar os
professores.
Durante anos, fui professor. E quando
digo isto há uma emoção fortíssima que me atravessa. Eu não sei se há profissão
mais nobre do que a de ensinar. E digo ensinar porque existe uma diferença
sensível entre ensinar e dar aulas. O professor no sentido de mestre é aquele
que dá lições.
Os professores que mais me marcaram na
vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para além da matéria
escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que um dia leu,
comovido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua intenção
nasceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redações, nós é que
as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem grande se
sujeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo que só faz
quem ainda está a aprender?
Lembro-me como se fosse hoje: o
professor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu ao estrado da
sala segurando, nos dedos trémulos, um caderno escolar. E era como se ele se
transfigurasse num menino frágil, em flagrante prestação de provas. Parecia um
mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia salvar.
Depois, quando anunciou o título da
redação veio a surpresa do tema que parecia quase infantil: o professor iria
falar das mãos da sua mãe. Éramos crianças e estranhámos que um adulto (e ainda
por cima com o estatuto dele) partilhasse connosco esse tipo de sentimento. Mas
o que a seguir escutei foi bem mais do que um espanto: ele falava da sua
progenitora como eu podia falar da minha própria mãe. Também eu conhecera essas
mesmas mãos marcadas pelo trabalho, enrugadas pela dureza da vida, sem nunca
conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético. No final, o texto acabava sem nenhum artifício,
sem nenhuma construção literária. Simplesmente, terminava assim, e eu cito de
cor: “é isto que te quero dizer, mãe,
dizer-te que me orgulho tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não
posso senão lembrar o carinho do teu eterno gesto.”
Havia qualquer coisa de profundamente
verdadeiro, qualquer coisa diversa naquele texto que o demarcava dos outros textos
do manual escolar. É que não surgia ali, em destacado, uma conclusão moral afixada
como uma grande proclamação, uma espécie de bandeira hasteada. Aquele momento
não foi uma aula. Foi uma lição que sucedeu do mesmo modo como vivemos as
coisas mais profundas: aprendemos, sem saber que estamos aprendendo. Lembro
este episódio como uma homenagem a todos os professores, a esses abnegados
trabalhadores que todos os dias entregam tanto ao futuro deste país.
Comecei por saudar os professores.
Parece que me esqueci dos estudantes. Ou que os coloquei em segundo plano. Mas
não.
Todos somos professores, mesmo que não
o saibamos. Perante os outros, perante os nossos pais, perante os amigos,
perante nós mesmos, com bons ou maus exemplos, com tristes ou gratificantes
lições, todos somos professores. Um dos maiores professores do nosso tempo é um
homem que nunca deu aulas. É um homem que ensinou a sermos mais humanos. Mais
do que isso, é um homem que ensinou a ter esperança num mundo tão
desesperançado. Esse professor de toda a humanidade, de todas as raças e credos,
é um africano. Chama-se Nelson Mandela. A sua vida foi uma interminável lição. Mandela
é hoje uma bandeira mundial não apenas porque foi um político que dignificou a
política, mas porque nos dignificou a todos nós, seres humanos.
Deixem-me falar de Mandela. Este homem,
que agora está doente e cansado, viveu encarcerado durante vinte e sete anos.
Vinte e sete anos são mais do que o tempo de vida da maior parte dos presentes
nesta sala. Vinte e sete anos de prisão é tempo suficiente para criar raiva,
ódio e insuperáveis ressentimentos. Contudo, este homem converteu esse
potencial negativo em força construtiva e reconciliadora. Um dos motivos de
inspiração de Mandela foi ter encontrado num poema que se chama “Invictus”. Vou
ler esse poema.
Do
ventre da noite que tudo cobre
Negra
como o fundo da cova escura
Agradeço
aos deuses de todos os céus
Por
quanto a minha invencível alma perdura
Ante
as garras do cruel acaso
Nem
eu tremi, nem o medo me turvou
Sob o
peso da ameaça e da desumana violência
Eu
sangrei mas a minha alma nunca se curvou
Não
importa se a passagem é estreita
Não
importa quantos castigos devo penar
Eu
sou o dono do meu destino
Eu
sou o capitão da minha alma.
Estes versos, meus amigos, foram uma
espécie de suporte moral que deram força a Nelson Mandela. Vezes infinitas o
prisioneiro 46664 da Ilha de Robin regressou a estes versos para não sucumbir.
Como escritor e poeta, dá-me grande alegria saber deste poder da poesia. Neste
caso, há qualquer coisa que deve ser acrescentada.
Na verdade, este poema foi escrito em
1875. O seu autor não foi um poeta sul-africano, não foi sequer um poeta
africano. Quem escreveu estes versos foi um britânico chamado William Ernest
Henley. Estes versos viajaram para além de séculos e continentes e iluminaram a
esperança de um homem que, em vez de se vitimizar e procurar a vingança, nos
deu uma eterna lição da crença nos outros.
Eu venho falar para a Escola de
Comunicação e Artes. Por isso me demorei nestes episódios. Porque acredito que
a comunicação e a arte são ferramentas de mudança tão importantes como a
política. Mandela fez da política um instrumento de comunicação da verdade. Ele
fez da política uma obra na arte da reconciliação, numa nação dividida pelo
preconceito. Talvez a cultura seja o mais poderoso e duradouro instrumento de
intervenção social. No nosso continente isso é bem claro. Vejamos um exemplo:
Desde há 50 anos, quando começaram a
acontecer as independências, o nosso continente conheceu mais de 210
presidentes. O desafio que vos faço é o seguinte: digam o nome de 10 (apenas
10) destes dirigentes que se tenham notabilizado como figuras humanas de
referência. Terão dificuldade. Será muito mais fácil enumerarmos artistas e
intelectuais dignos de serem lembrados. E é aqui que a figura de Mandela é tão
importante para nós, africanos. Podemos não nos lembrar de muitos políticos
africanos que nos dignifiquem. Mas o nome de Mandela basta para compensar toda
essa ausência e devolver o orgulho de sermos quem somos.
Caros amigos, vou entrar agora no tema
central desta alocução.
Todos os dias centenas de chapas de
caixa aberta transitam por esta cidade que parece afastar-se do seu próprio
lema “Maputo, cidade bela, próspera, limpa, segura e solidária”. Cada um destes
“chapas” circula superlotado com dezenas de pessoas que se entrelaçam apinhadas
num equilíbrio inseguro e frágil. Aquilo parece um meio de transporte. Mas não
é. É um crime ambulante. É um atentado contra a dignidade, uma bomba relógio
contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é
aceitável. Quem se transporta assim são animais. Não são pessoas. Quem se
transporta assim é gado. Para muitos de nós esse atentado contra o respeito e a
dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se
trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De tanto convivermos
com o intolerável, existe um risco: aos poucos aquilo que era errado acaba por
ser “normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação
definitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a maneira moçambicana.”
Desse modo nos aceitamos pequenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados.
O caso dos chapas é apenas um exemplo,
uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção do inevitável”. E
é simples: aos poucos, os passageiros do “chapa” deixam de ser visíveis. Na nossa
sociedade essas pessoas já contavam pouco. É gente pobre, gente sem rosto,
gente que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá no jornal quando
o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um simples número
para se contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras coisas ganharam
brilho na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a visibilidade os
carros de luxo de uma pequena minoria. Deixamos de ver os “chapas” mortais, mas
estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.
O assunto que quero abordar convosco
hoje é esta operação que banaliza a injustiça e torna invisível a miséria
material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza e faz paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua
para produzir riqueza mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho,
nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a
nossa própria vida.
Estamos
perante uma espécie de formatação mental e moral. A mensagem é a seguinte: querem
dizer-nos as nossas doenças sociais são incuráveis. Resta-nos viver de remendos
e expedientes.
Visitou-me
um escritor amigo da Nigéria. Ele percorreu as cidades de Moçambique e ligou-me
de Pemba. A primeira coisa que ele disse: Estou
maravilhado! Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto
espantou-me a mim. Principalmente porque esse assombro provinha de um cidadão
da Nigéria, o maior produtor de petróleo de África. Só depois entendi. O que
passa na Nigéria – depois de 50 anos de exportação de petróleo - é que as
cidades nigerianas não possuem aquilo que para nós é comum: estações de
gasolina vendendo gasolina. As bombas de combustível naquele país estão quase
todas fechadas e a gasolina é vendida em garrafas e jerricans nos passeios
públicos. Para alguns esse é um processo natural em África. Mas não é. O que
sucedeu foi o seguinte: o governo subsidiou os preços dos combustíveis mas não
foram os mais desfavorecidos que lucraram mais. Foi uma parte da elite nigeriana
que se apoderou dos circuitos formais e desviou para os mecanismos informais a
distribuição e venda do combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ainda
mais ricos. Mas não é a questão politica que eu quero trazer aqui. A questão é
que, para o cidadão da Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue, se tornou normal. Ver
bombas de gasolina a funcionar numa nação bem mais pobre como é Moçambique foi,
para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos proclamarem que os
mercados informais são a única maneira que África sabe fazer comércio. Que
apenas nas barracas sabemos comer e beber. É mentira. A dumba-nenguização da
economia é uma estratégia escolhida para fugir dos impostos, para escapar das
obrigações para com o património público. Quando o meu amigo nigeriano voltou a
Maputo ele disse-me o seguinte:
- A
minha surpresa não foi tanto o que eu vi em Moçambique. Foi sim o que já não
sabia ver na Nigéria.
O principal aliado dos tiranos é a
cultura da aceitação. Talvez alguns de vocês sabem que sou um dos autores do
Hino Nacional. Quando entregamos o Hino para aprovação na Assembleia da
Republica nós não podíamos imaginar que alguns deputados se sentissem
incomodados com a passagem da letra que diz: Nenhum tirano nos irá escravizar.
É claro que a letra não fala do presente. Mas um hino é feito para durar. E
quem pode garantir que um candidato a tirano não assaltará a nossa futura
história? O melhor modo de prevenir esse risco não é apenas consolidar a
democracia política. É investir numa cultura viva, numa cidadania de construção
do futuro. O que me interessa falar aqui, numa Escola de Arte e Cultura é a
dimensão cultural das nossas pequenas e grandes misérias.
A invocação da chamada “africanidade”
é uma das armadilhas mais usadas pelos tiranos. No Malawi atacaram e rasgaram a
roupa de mulheres pelo simples facto de andarem de calças. Mulheres de calças
não é uma coisa africana – foi o que invocaram os agressores. Em nome de África
se agrediram e mataram pessoas apenas porque eram homossexuais. Em nome da
pureza africana se continua a impedir que, apenas por serem do sexo feminino,
milhares de crianças não prossigam os seus estudos. Em nome de África se cometem
os maiores crimes contra África. O nosso continente é feito de passado e
tradição, sim. Mas é feito de modernidade. É feito de mudança. Como todos os
outros continentes.
As dinâmicas de mudança confrontam-se
com uma identidade feita de passado e tradição. Tudo isto tem a ver com o processo
da construção do inevitável. Esse processo envolve o mecanismo da acomodação e
o mecanismo da invisibilidade. A acomodação tem várias facetas. Sabemos que
está errado, mas nada fazemos. Porque temos medo. Porque achamos que não tem a
ver connosco. Ou porque fazemos cálculos. É melhor calar e ser promovido. É
melhor recolher uns magros favores em troca do nosso silêncio e da nossa
cumplicidade.
O mecanismo da invisibilidade foi
tratado por José Saramago no livro O ensaio
sobre a cegueira. Nós estamos doentes, não porque os olhos tenham alguma
deficiência, mas porque deixamos de saber olhar. Deixamos de querer ver. E
deixamos de nos ver a nós mesmos. No fundo, este é o desfecho desse processo de
alienação. Tornamo-nos cegos. Quem não vê, aceita que outros lhe digam como é o
mundo.
Eu rabisquei uma lista de fenómenos
sociais que se tornaram invisíveis em Moçambique. A lista é bem extensa.
Mencionarei apenas de alguns.
A
violência contra os mais fracos
O primeiro desses fenómenos é a
violência. Dizemos com frequência que somos um povo pacífico. Isso é verdade.
Mas os povos todos, do mundo, são pacíficos por natureza. O que muda é a sua
história. Assim, é verdade que somos um povo pacífico, mas também é verdade que
foi esse povo pacífico que fez uma guerra civil que matou cerca de um milhão de
pessoas. A guerra terminou em 1992, e essa data é talvez a mais importante da
nossa história recente, depois da Independência Nacional. Terminou o conflito
militar, mas não terminaram outras guerras silenciosas, invisíveis e perversas.
Hoje somos uma sociedade em guerra
consigo mesma. Os alvos dessa guerra são sempre os mais fracos. Estamos em conflito
com as mulheres, com as crianças, com os velhos, estamos em guerra com os
pobres, com aqueles que não têm poder. Somos uma sociedade obcecada pelo Poder.
Quem não tem poder é como quem circula na traseira do chapa: não existe. Tudo
tem uma leitura política, o mais pequeno detalhe é um recado, uma definição de
hierarquias. Quem chega primeiro à reunião, onde se senta, quem não comparece à
cerimónia, com que carro chegou, de quem se faz acompanhar, tudo isso são
sinais de poder. Nas ruas sou chamado de patrão, sou chamado de “boss”, porque
a minha cor da pele é tida como um sinal de Poder. O vendedor de viaturas
insurgiu-se com a escolha de um carro que eu queria comprar. Deixe que escolho
um carro compatível com o seu estatuto.
Estamos em guerra connosco mesmos e o
primeiro desses alvos é curiosamente uma maioria: as mulheres. Em Moçambique há
mais um milhão de mulheres que homens. Mas ao nível das percepções, os homens
dão pouca importância a essa verdade. Eles são chefes, os donos, e olham as mulheres
como uma pertença privada. As mulheres, por outro lado, ainda pedem licença
para existir. A maioria das mulheres que são objecto de violência dos maridos
acha que isso não é um crime. Acham normal, acham natural. Ser agredida faz
parte do seu destino, da sua imutável natureza.
E conto-vos três episódios reais, que
retirei da nossa imprensa apenas nas últimas semanas:
Em
Cabo Delgado 17 homens violaram uma mulher que se atreveu a atravessar o
acampamento onde se praticavam os rituais de iniciação. Da parte das
autoridades locais houve uma inaceitável passividade. Foi necessária
insistência da família e de ONGs para que houvesse uma insuficiente resposta.
Em
Manica dois jovens violam sexualmente uma mulher no sétimo mês da gravidez.
Em Tete um homem mata a criança de
dois meses e esfaqueia gravemente a mulher porque a meio do dia ele chegou a
casa e a mulher recusou fazer sexo com ele. O jornalista da televisão que entrevista
o confesso culpado sugere uma quase legitimidade do ato ao perguntar: “o senhor
devia estava necessitado não é verdade?”.
Reclamamos a violência da rua, mas é
mais provável uma mulher ser agredida dentro de casa do que fora de casa. É
mais provável uma criança ser agredida e violentada no espaço da sua família. Esta
tendência não sucede apenas em Moçambique, mas no mundo. As estatísticas são
reveladoras e assustadoras: cerca de 70 por cento dos actos de violência contra
a mulher acontecem dentro da casa. Mais de 60 por cento dos assassinatos de
mulheres são cometidos pelos seus companheiros ou ex-companheiros. Em todo o
mundo, uma em cada três mulheres ou já foi ou irá ser agredida ou violentada. Não
é pois Moçambique que é afectado de modo particular. O que sucede é que para
nós essa violência é legitimada por razões que se dizem culturais. Nós ainda
banalizamos muito facilmente. É ainda prevalecente a ideia de que a mulher é
que é culpada, porque ela é quem provoca a violência. Ainda achamos que este
assunto não tem a ver connosco, que é para ser denunciado pelas ONGs. Isto é,
desresponsabilizamo-nos. Mesmo sendo mulheres, achamos que este assunto tem a
ver com os outros. Mesmo sendo homens, que têm mães, irmãs e filhas, achamos
que isto não tem nada a ver connosco.
OUTRA GUERRA - AS VIUVAS
Sugiro que leiam o livro de Fabrício
Sabat, chamado As viúvas da minha terra,
para ficarem com uma ideia do crime generalizado que é cometido contra mulheres
que vivem um momento dramático da sua vida. E nesse exacto momento de
fragilidade, são assaltadas pelos próprios parentes. Levam-lhes os bens, os
filhos, o sossego.
CASO DAS VELHAS
Acusadas de feitiçaria, roubaram-nas
durante a vida, fizeram sumir a sua infância e juventude e, no final, roubaram
a possibilidade de uma velhice tranquila, usufruída com os netos e as
lembranças. Está longínqua a imagem de África como um lugar especial porque os
velhos são respeitados.
GUERRA
CONTRA OS GAYS E AS LÉSBICAS
Moçambique
nem é dos países menos tolerantes. Há países que consideram formal e legalmente
um crime o simples facto de ser ter uma orientação sexual diferente. Mesmo
assim, há entre nós, uma enorme intolerância.
CASO
DOS DOENTES MENTAIS
Nós estamos tão ocupados com outras
doenças que esquecemos que não é apenas o HIV SIDA que tem implicações do ponto
de vista do estigma social. As doenças mentais são outro mal não visível. Não
creio que existam estatísticas da prevalência de doenças mentais em Moçambique.
Mas a média em África é de 14 por cento da população.
ALBINOS
Vou contar-vos um episódio real. Conheci
um pedreiro que chamarei apenas por Fabião, que certa vez executou uma obra
para minha casa. Um dia, uma moça albina veio à minha porta pedir água. O
pedreiro desceu do escadote onde trabalhava para me dar conselhos: “é melhor
não dar, ou usar um copo que depois deita fora”. Quando lhe perguntei porquê,
ele respondeu: “aquela tjidajna é alguém que tem muitos problemas”. E
reproduziu os habituais mitos e preconceitos sobre os albinos. No final
confessou: “ainda bem que na minha família nós não temos disso».
Passaram-se anos e a semana passada o
mesmo Fabião ligou para mim a perguntar se era possível entrar sem convite na
exposição “Filhos da Lua”, na Fortaleza de Maputo. Ele ouviu na rádio que a
exposição tinha por tema “os albinos” e estava muito interessado em levar a sua
filha a esse evento. “É que a minha filha nasceu albina.” Fabião não podia nunca
imaginar ser pai de uma tjidjana. Mas foi. E ele agora, por amor a essa menina,
queria enfrentar junto com ela os preconceitos que ele mesmo guardava dentro de
si. Chamei Fabião e ofereci-lhe que levasse para a sua filha dois discos. Um de
Salif Keita, outro do nosso Aly Fake. E disse “esses são os melhores copos de
água. Refrescam a alma”.
Muitas vezes pensamos que essas
diferenças vivem fora de nós. A diferença está dentro de nós. Um em cada 35
moçambicanos é portador do gene do albinismo. Um em cada 35 pessoas é portador
dessa gente. Nenhum de nós sabe à partida se poderá ser pai ou mãe de uma
criança albina.
GUERRA
COM OS MORTOS
Até aqui falei de conflitos com
mulheres, crianças, velhos. Mas todos esses segmentos sociais são compostos por
gente viva. O mais triste é que a nossa sociedade entrou em guerra com os seus
próprios mortos. Este é o sintoma mais grave da nossa patologia social: passamos
a maltratar até os nossos mortos. O que acontece nos nossos cemitérios é um
atentado contra os mais básicos princípios morais. As famílias enterram os seus
entes queridos e são obrigadas a retirar o mais ínfimo valor que acompanhe o
falecido. Sabem que no dia seguinte, o caixão foi assaltado, o morto foi
despido. As próprias jarras de flores são quebradas antes de serem colocadas
para prevenir que sejam roubadas e vendidas. Não contentes em assaltarem os
vivos, há gangs que se especializaram em roubar os mortos. Nem depois do último
suspiro estaremos a salvo dos ladrões.
Meus
amigos
Eu
disse que estávamos em guerra connosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se
de duas violências. A violência daqueles que agridem. E a violência dos que se
calam. Marthin Luther King disse O que me
entristece não é apenas o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons.
A lista das nossas guerras domésticas
estende-se por mais domínios. Os exemplos que escolhi ilustram o facto de que
não somos a sociedade pacificada que pretendíamos ser. Há um percurso enorme a
percorrer e esse caminho é sobretudo uma viagem interior. Essa viagem só
acontecerá se vocês souberem ver, souberem não aceitar. Tudo o que aqui disse
pode ser resumido em dois textos pequenos de autores alemães. Peço-vos que
escutem. O primeiro é uma parábola e diz o seguinte:
“Um dia, vieram e levaram o meu
vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte,
vieram e levaram o meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou
comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram o meu vizinho
católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e
levaram-me mim. Nessa altura, já não havia mais ninguém para reclamar.”
O segundo texto é um
apelo na forma de verso, escrito pelo dramaturgo Bertolt Brecht:
"Nós pedimos-vos
com insistência:
Nunca digam - Isso é natural.
Diante das barbaridades de cada dia,
Numa época em que corre sangue
Num tempo em que a arbitrariedade tem força de lei,
Num momento em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
Se aceitamos as coisas como naturais
este nosso mundo
torna-se imutável
Caros amigos
O nosso tempo também
está em guerra contra os jovens. À nossa frente, e não falo apenas de
Moçambique, se anunciam tempos difíceis. À nossa frente está um futuro magro em
que parece que apenas alguns podem caber. O que nos sugerem é que briguemos uns
com outros para ver quem cabe nessa estreita porta. Mas talvez seja possível
criar um outro futuro mais amplo.
Vão ser assediados. Por forças políticas
que estão mais preocupadas com o Poder do que com a resolução efectiva dos
problemas. Por forças que se lembram dos jovens quando se trata de colher
votos. Por forças que falam aos jovens, não falam com os jovens.
Vocês
são jovens. Ser jovens é uma condição inerente, que se exerce sem esforço. Mais
do que jovens, sejam diferentes. Tragam para o nosso tempo o inesperado, o que
é novo, o que é historicamente produtivo.
Uma
nova classe está povoando o poder político em Moçambique. São os papagaios.
Reproduzem o discurso dos chefes. A maior parte deles são jovens. Mas são
jovens de alma envelhecida. Os papagaios podem pensar que o seu futuro está
assegurado porque olham o país como se fosse um aviário. Mas o nosso futuro como
nação não se constrói senão com ousadia, com vitalidade e um infinito respeito
pelos outros.
Ficamos muitas vezes à espera, ficamos
à espera que o governo faça. Temos medo de tomar iniciativa. Achamos arriscado.
Não agimos porque dizemos que faltam recursos, falta orçamento, falta
autorização do chefe. Mas existem lições que parecendo pequenas podem tocar
alguém para toda a vida.
O professor primário que leu uma
redacção sobre as mãos calejadas de sua mãe não imaginava que estaria marcando
para sempre um aluno seu. O poeta William Henley não poderia imaginar que
versos seus poderiam sustentar, cem anos mais tarde, a vontade de lutar de um
africano que iria mudar o destino de milhões de pessoas.
Fazemos o que fazemos não porque sejam
grandiosas iniciativas mas porque necessitamos mudar as coisas e melhorar o
mundo. Fazemos o que fazemos porque, como diz o poema, nós queremos ser donos
do nosso destino e capitães da nossa alma colectiva.
Aula inaugural da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane (ECA/UEM), em 2012.