Sombra
José Vítor Malheiros
Quando eu era pequeno, era normal ler na instrução primária
textos de louvor. Louvor às mais diversas coisas. Vinham nos livros de leitura,
em folhinhas avulsas, nos livros a sério que havia na biblioteca da escola, nos
livrinhos da Catequese. Havia textos de propaganda política que louvavam a
Pátria, o Chefe, a Mocidade ou a Igreja. Textos de fervor nacionalista que
louvavam a História, a gesta heróica dos Lusitanos, os Descobrimentos. Textos
de exaltação moral que louvavam as virtudes cardinais ou teologais, às vezes
com bonitas histórias exemplares. E havia os textos romântico-económicos, de
louvor à Natureza e às riquezas naturais, dos animais domésticos aos rios, do
mar às serras. Um desses textos – e não sei se me recordo de um texto em
particular ou se amalgamo vários num só – era sobre “a árvore”.
“A árvore” era um manancial de benesses e fartava-se de nos
dar coisas: dava-nos a nobre madeira, com a qual se faziam móveis e alfaias diversas
(não se falava de celulose nem de papel nessa altura); dava-nos a lenha, com a
qual nos aquecíamos nas longas noites de inverno; dava-nos o azeite, com que
nos alumiávamos na noite escura (o azeite era mais para alumiar que para pôr na
salada, ainda que uma candeia fosse para mim algo com uma exclusiva existência
literária); dava-nos a cortiça benfazeja, com a qual se faziam rolhas para as
garrafas e tarros para transportar comida e uma quantidade de outros objectos;
dava-nos os seus frutos suculentos e refrescantes, que nos saciavam a sede e
apaziguavam a fome; dava-nos a sua seiva generosa, com a qual se faziam colas e
borracha e rebuçados para a tosse; dava-nos a beleza incomparável dos seus
ramos em flor e, no final, em jeito de clímax, oferecia-nos a sua sombra
aprazível, espraiando-a debaixo dos seus ramos e convidando-nos ao doce
descanso no calor das tardes de Verão.
Eu percebia que o autor do texto tinha querido estender-se
ao máximo para dizer bem da árvore e que tinha ido buscar tudo aquilo de que se
tinha podido lembrar e mais um par de botas. E eu achava que a madeira e a
fruta até eram coisas boas, que se percebia que estivessem na lista. E até
percebia que se falasse das flores, ainda que me parecesse uma coisa um bocado
efeminada. Mas a sombra? A sombra? Dizer que as árvores eram boas porque davam
sombra? Para mim era como elogiar a suavidade ao tacto do manto celeste ou a
música perfeita dos sólidos geométricos.
O que era a sombra? A sombra não era nada e se era preciso
elogiar a sombra para dizer bem das árvores era a prova de que as árvores,
afinal, não davam assim tantas coisas como isso. Mas é claro que, se a ocasião
se apresentasse, numa redacção, por exemplo, eu não deixava de fazer a lista
completa das contribuições da árvore para a nossa felicidade, sem esquecer a
malfadada sombra, não fosse a professora pôr-me “incompleto” ou acrescentar a
vermelho um daqueles irritantes comentários cheios de enormes pontos de
exclamação e interrogação: “E a sombra??!! Esqueceste-te da SOMBRA!!??”
Quando eu era pequeno, não sabia o que era a sombra. Quando
estávamos na praia, às vezes a minha mãe dizia-me para eu ir para a sombra, que
era o sítio onde estava mais escuro, mas nunca tinha percebido bem o que era,
nem por que era preciso ir para lá, nem por que razão era boa, nem sabia que
existia pessoas que genuinamente gostavam dela e a procuravam. A única vantagem
que eu via em ir para a sombra era poder ir brincar com os meus amigos para
aquele espaço secreto entre as barracas de praia e o paredão de pedra, onde
estávamos protegidos dos olhares dos adultos.
A preocupação dos adultos pela sombra era algo tão
misterioso para mim como o facto de o meu pai nunca atender o telefone quando
estava a jantar. Qual era o problema de interromper o jantar? Qual era o
problema de se levantar e ir falar ao telefone? Não percebia como é que isso
lhe podia desagradar tanto. Era tão giro falar ao telefone.
Não me lembro quando comecei genuinamente a apreciar a
sombra, mas foi já bem entrado na idade adulta. E, previsivelmente, com o
passar dos anos, o meu gosto pela sombra foi aumentando.
Há dias dei por mim a desviar-me do meu caminho para
aproveitar uns dez metros da sombra que um enorme pinheiro lançava no passeio
da Rua Marquês de Fronteira e a abrandar o passo para prolongar o gozo da
frescura do ar, no meio dos 38 graus inclementes desse dia de Julho. E
lembrei-me daquela misteriosa sombra dos meus textos da instrução primária e
pensei quantos anos tiveram de passar até que eu conseguisse perceber
perfeitamente, finalmente, o que queria dizer algo tão simples e importante
como isto.
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