segunda-feira, 19 de novembro de 2012


Sombra

José Vítor Malheiros

Quando eu era pequeno, era normal ler na instrução primária textos de louvor. Louvor às mais diversas coisas. Vinham nos livros de leitura, em folhinhas avulsas, nos livros a sério que havia na biblioteca da escola, nos livrinhos da Catequese. Havia textos de propaganda política que louvavam a Pátria, o Chefe, a Mocidade ou a Igreja. Textos de fervor nacionalista que louvavam a História, a gesta heróica dos Lusitanos, os Descobrimentos. Textos de exaltação moral que louvavam as virtudes cardinais ou teologais, às vezes com bonitas histórias exemplares. E havia os textos romântico-económicos, de louvor à Natureza e às riquezas naturais, dos animais domésticos aos rios, do mar às serras. Um desses textos – e não sei se me recordo de um texto em particular ou se amalgamo vários num só – era sobre “a árvore”.

“A árvore” era um manancial de benesses e fartava-se de nos dar coisas: dava-nos a nobre madeira, com a qual se faziam móveis e alfaias diversas (não se falava de celulose nem de papel nessa altura); dava-nos a lenha, com a qual nos aquecíamos nas longas noites de inverno; dava-nos o azeite, com que nos alumiávamos na noite escura (o azeite era mais para alumiar que para pôr na salada, ainda que uma candeia fosse para mim algo com uma exclusiva existência literária); dava-nos a cortiça benfazeja, com a qual se faziam rolhas para as garrafas e tarros para transportar comida e uma quantidade de outros objectos; dava-nos os seus frutos suculentos e refrescantes, que nos saciavam a sede e apaziguavam a fome; dava-nos a sua seiva generosa, com a qual se faziam colas e borracha e rebuçados para a tosse; dava-nos a beleza incomparável dos seus ramos em flor e, no final, em jeito de clímax, oferecia-nos a sua sombra aprazível, espraiando-a debaixo dos seus ramos e convidando-nos ao doce descanso no calor das tardes de Verão.

Eu percebia que o autor do texto tinha querido estender-se ao máximo para dizer bem da árvore e que tinha ido buscar tudo aquilo de que se tinha podido lembrar e mais um par de botas. E eu achava que a madeira e a fruta até eram coisas boas, que se percebia que estivessem na lista. E até percebia que se falasse das flores, ainda que me parecesse uma coisa um bocado efeminada. Mas a sombra? A sombra? Dizer que as árvores eram boas porque davam sombra? Para mim era como elogiar a suavidade ao tacto do manto celeste ou a música perfeita dos sólidos geométricos.

O que era a sombra? A sombra não era nada e se era preciso elogiar a sombra para dizer bem das árvores era a prova de que as árvores, afinal, não davam assim tantas coisas como isso. Mas é claro que, se a ocasião se apresentasse, numa redacção, por exemplo, eu não deixava de fazer a lista completa das contribuições da árvore para a nossa felicidade, sem esquecer a malfadada sombra, não fosse a professora pôr-me “incompleto” ou acrescentar a vermelho um daqueles irritantes comentários cheios de enormes pontos de exclamação e interrogação: “E a sombra??!! Esqueceste-te da SOMBRA!!??”

Quando eu era pequeno, não sabia o que era a sombra. Quando estávamos na praia, às vezes a minha mãe dizia-me para eu ir para a sombra, que era o sítio onde estava mais escuro, mas nunca tinha percebido bem o que era, nem por que era preciso ir para lá, nem por que razão era boa, nem sabia que existia pessoas que genuinamente gostavam dela e a procuravam. A única vantagem que eu via em ir para a sombra era poder ir brincar com os meus amigos para aquele espaço secreto entre as barracas de praia e o paredão de pedra, onde estávamos protegidos dos olhares dos adultos.

A preocupação dos adultos pela sombra era algo tão misterioso para mim como o facto de o meu pai nunca atender o telefone quando estava a jantar. Qual era o problema de interromper o jantar? Qual era o problema de se levantar e ir falar ao telefone? Não percebia como é que isso lhe podia desagradar tanto. Era tão giro falar ao telefone.

Não me lembro quando comecei genuinamente a apreciar a sombra, mas foi já bem entrado na idade adulta. E, previsivelmente, com o passar dos anos, o meu gosto pela sombra foi aumentando.

Há dias dei por mim a desviar-me do meu caminho para aproveitar uns dez metros da sombra que um enorme pinheiro lançava no passeio da Rua Marquês de Fronteira e a abrandar o passo para prolongar o gozo da frescura do ar, no meio dos 38 graus inclementes desse dia de Julho. E lembrei-me daquela misteriosa sombra dos meus textos da instrução primária e pensei quantos anos tiveram de passar até que eu conseguisse perceber perfeitamente, finalmente, o que queria dizer algo tão simples e importante como isto.

José Vítor Malheiros. Sombra. Público. 31.07.2012. p. 45.

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