Mia Couto
O SONHO DO MORTO
Sou o morto.
Se eu tivesse cruz ou mármore neles estaria escrito: Ermelindo Mucanga. Mas eu
faleci junto com meu nome faz quase duas décadas. Durante anos fui vivo de patente,
gente de autorizada raça. Se vivi com direiteza, desglorifiquei-me foi no
falecimento. Me faltou cerimónia e tradição quando me enterraram. Não tive
sequer quem me dobrasse os joelhos. A pessoa deve sair do mundo tal igual como
nasceu, enrolada em poupança de tamanho. Os mortos devem ter a discrição de
ocupar pouca terra. Mas eu não ganhei acesso a cova pequena. Minha campa
estendeu-se por minha inteira dimensão, do extremo à extremidade. Ninguém me
abriu as mãos quando meu corpo ainda esfriava. Transitei-me com os punhos
fechados, chamando maldição sobre os viventes. E ainda mais: não me viraram o rosto
a encarar os montes Nkuluvumba. Nós, os Mucangas, temos obrigações para com os antigamentes.
Nossos mortos olham o lugar onde a primeira mulher saltou a lua, arredondada de
ventre e alma.
Não foi só o
devido funeral que me faltou. Os desleixos foram mais longe: como eu não
tivesse outros bens me sepultaram com minha serra e o martelo. Não o deviam ter
feito. Nunca se deixa entrar em tumba nenhuns metais. Os ferros demoram mais a
apodrecer que os ossos do falecido. E ainda pior: coisa que brilha é chamatriz
da maldição. Com tais utensílios, me arrisco a ser um desses defuntos
estragadores do mundo.
Todas estas
atropelias sucederam porque morri fora do meu lugar.
Mia Couto (2010). A Varanda do Frangipani. Lisboa:
Caminho. pp. 11-12.
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