Regresso à Ilha
Romana Petri
Desta vez não é propriamente Verão, é uma Primavera avançada
de fim de Maio. Nem sequer devia ir ao Pico, devia ir apenas ao Faial
apresentar o livro que te dediquei. Mas depois aconteceu aquela coisa estranha
na Feira do Livro, em Lisboa. Sentei-me à mesa de apresentação e, na primeira
fila, estava uma rapariga a olhar para mim. Eu também olhei para ela e então
ela levantou-se, aproximou-se de mim e disse, Aproveito antes que comece a sua
apresentação. Chamo-me Marta, sou prima do João Freitas.
O
resto do dia já não fez muito sentido, nem tão-pouco sei como correu aquela
apresentação, pois durante o tempo todo só tu estiveste no meu pensamento. Tu a
caminhares pela estrada de Arcos, com aquelas cores a mudarem constantemente o
céu, o cigarro entre os lábios e o boné azul do costume na cabeça, com a
inscrição já desbotada. Falava com as poucas pessoas que estavam lá, mas via-te
a cambalear um pouco por causa do álcool, as tuas faces mal barbeadas, aqueles
tiques de solitário que apanhaste depois da morte da Telma. Sabes bem como
fazes, de súbito, pões-te a falar sozinho e imediatamente depois paras porque
te apercebes disso e sentes vergonha. Explicaste-me uma vez como isso te
acontece, disseste-me, Acontece que ouço a minha voz falar alto dentro da minha
cabeça, troco os pensamentos com a voz, e por isso ponho-me a responder. Mas
isso acontece quando bebo de mais. E depois ao ouvir a minha voz verdadeira
responder aos meus pensamentos penso que estou a enlouquecer e paro.
Sei
como fazes quando te dás conta. Tiras o boné, sacode-lo com raiva numa coxa,
passas a mão na testa suada. E ficas assim por um pouco, sob aquele céu que
corre. Depois voltas a pô-lo e continuas a caminhar batendo os pés com força no
chão, levantando a terra vermelha de Arcos. Chegas ao poço, sentas-te no
beiral, pegas no copo de lata amarrado à corda, lança-lo à água, puxa-lo para
cima quando está cheio para beber apenas um gole. Com o resto lavas a cara, e,
o copo, deixa-lo a baloiçar no beiral do poço, agitado pelo vento que te pões a
olhar. Porque sei que tu, o vento, olha-lo e vê-lo, apercebo-me disso pela
expressão com que ficas nos olhos. Sei o que pensas, pensas ser o único que o
consegues ver. Uma vez até te perguntei: João, como é o vento? E tu respondeste-me:
Faz o que quer. E de repente fizeste um gesto com a mão a imitar a corrida do
vento. Mas depois sorriste-me, porque sabias que isso não era o que eu queria
saber, eu queria saber como eram os olhos e os cabelos do
vento, qual era o timbre da sua voz e quantos anos lhe davas. E à minha
expressão, que ainda interrogava, respondeste com uma das tantas leituras
velozes que nós dois fazemos dentro da nossa cabeça. E para te fazer perceber
que tinha entendido pus-me também a olhar todas aquelas corridas desenfreadas
da Telma.
Romana Petri (2006). Regresso à
Ilha. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores, Lda. pp. 5-6.
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