terça-feira, 20 de novembro de 2012


Regresso à Ilha

Romana Petri

Desta vez não é propriamente Verão, é uma Primavera avançada de fim de Maio. Nem sequer devia ir ao Pico, devia ir apenas ao Faial apresentar o livro que te dediquei. Mas depois aconteceu aquela coisa estranha na Feira do Livro, em Lisboa. Sentei-me à mesa de apresentação e, na primeira fila, estava uma rapariga a olhar para mim. Eu também olhei para ela e então ela levantou-se, aproximou-se de mim e disse, Aproveito antes que comece a sua apresentação. Chamo-me Marta, sou prima do João Freitas.

         O resto do dia já não fez muito sentido, nem tão-pouco sei como correu aquela apresentação, pois durante o tempo todo só tu estiveste no meu pensamento. Tu a caminhares pela estrada de Arcos, com aquelas cores a mudarem constantemente o céu, o cigarro entre os lábios e o boné azul do costume na cabeça, com a inscrição já desbotada. Falava com as poucas pessoas que estavam lá, mas via-te a cambalear um pouco por causa do álcool, as tuas faces mal barbeadas, aqueles tiques de solitário que apanhaste depois da morte da Telma. Sabes bem como fazes, de súbito, pões-te a falar sozinho e imediatamente depois paras porque te apercebes disso e sentes vergonha. Explicaste-me uma vez como isso te acontece, disseste-me, Acontece que ouço a minha voz falar alto dentro da minha cabeça, troco os pensamentos com a voz, e por isso ponho-me a responder. Mas isso acontece quando bebo de mais. E depois ao ouvir a minha voz verdadeira responder aos meus pensamentos penso que estou a enlouquecer e paro.

         Sei como fazes quando te dás conta. Tiras o boné, sacode-lo com raiva numa coxa, passas a mão na testa suada. E ficas assim por um pouco, sob aquele céu que corre. Depois voltas a pô-lo e continuas a caminhar batendo os pés com força no chão, levantando a terra vermelha de Arcos. Chegas ao poço, sentas-te no beiral, pegas no copo de lata amarrado à corda, lança-lo à água, puxa-lo para cima quando está cheio para beber apenas um gole. Com o resto lavas a cara, e, o copo, deixa-lo a baloiçar no beiral do poço, agitado pelo vento que te pões a olhar. Porque sei que tu, o vento, olha-lo e vê-lo, apercebo-me disso pela expressão com que ficas nos olhos. Sei o que pensas, pensas ser o único que o consegues ver. Uma vez até te perguntei: João, como é o vento? E tu respondeste-me: Faz o que quer. E de repente fizeste um gesto com a mão a imitar a corrida do vento. Mas depois sorriste-me, porque sabias que isso não era o que eu queria saber, eu queria saber como eram os olhos e os cabelos do vento, qual era o timbre da sua voz e quantos anos lhe davas. E à minha expressão, que ainda interrogava, respondeste com uma das tantas leituras velozes que nós dois fazemos dentro da nossa cabeça. E para te fazer perceber que tinha entendido pus-me também a olhar todas aquelas corridas desenfreadas da Telma.

Romana Petri (2006). Regresso à Ilha. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores, Lda. pp. 5-6.

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