quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Manuel da Fonseca, Excerto de "O Largo"

     "Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobre para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido, o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.
     O comboio matou o Largo. Sob o rumor do rodado de ferro morreram homens que eu supunha eternos. O senhor Palma Branco, alto, seco, rodeado de respeito. Os três irmãos Montenegro, espadaúdos e graves. Badina fraco e repontão. O Estróina, bêbado, trocando as pernas, de navalha em punho. O Má Raça, rangendo os dentes, sempre enraivecido contra tudo e todos. O lavrador de Alba Grande, plantado ao meio do Largo com a sua serena valentia. Mestre Sobral, Ui Cotovio, rufião, de caracol sobre a testa. O Acácio, o bebedola do Acácio, tirando retratos, curvado debaixo do grande pano preto. E lá no cimo da rua, esgalgado, um homem que eu nunca soube quem era e que aparecia subitamente à esquina, olhando cheio de espanto para o Largo.
     Nesse tempo, as faias agitavam-se, viçosas. Acenavam rudemente os braços e eram parte de todos os grandes acontecimentos. À sua sombra, os palhaços faziam habilidades e dançavam ursos selvagens. À sua sombra batiam-se os valentes; junto do trnco de uma faia caiu morto António Valmorim, temido pelos homens e amado pelas mulheres.
     Era o centro da Vila. Os viajantes apeavam-se da diligência e contavam novidades. Era através do Largo que o povo comunicava com o mundo. Também, à falta de notícias, era aí que se inventava alguma coisa que se parecesse com a verdade. Nada a destruía: tinha vindo do Largo. Assim, o Largo era o centro do mundo.
     Quem lá dominasse, dominava toda a Vila. [...]"
Manuel da Fonseca (1981) "O Largo", in O Fogo e as Cinzas. Lisboa: Caminho: pp.23-24

Aguarela de Leonel Borrela

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