Três Mochileiros em Huahine
Gonçalo Cadilhe
(…)
Cheguei num cargueiro à ilha de Huahine. Saímos ao fim da manhã do porto de Papeete. Não tinha uma hora precisa de saída, era chegar cedo e sentar-se nas docas à espera. Foi aí que conheci o Peter, o americano. Viajava também para Huahine, onde chegámos já noite avançada. Tomo, o japonês, conhecemo-lo mais tarde, já instalados na pensão para mochileiros da Guynette. Ficámos amigos: alugámos um carro juntos, cozinhámos a quatro mãos e partilhámos o mesmo dormitório. Reparo agora com um sorriso: cada um de nós representava uma forma particular de enfrentar o mundo. Se uma qualquer enciclopédia apresentasse uma tipologia do viajante, cada um de nós ia parar a uma entrada diferente.
Peter tinha trabalhado largos anos num projecto de uma obra pública na Califórnia do Sul. Era engenheiro civil e tinha ganhado bom dinheiro com esse contrato. Quando terminou, não procurou emprego de imediato. Decidiu viajar por um ano à volta do mundo, escolhendo alguns destinos que lhe interessavam particularmente. Já estava na recta final da sua viagem, ali no meio do Pacífico. Tinha dado a sua volta ao mundo seguindo para leste e o próximo voo que iria apanhar seria já directo a Los Angeles, à vidinha de todos os dias. Havia uma sofreguidão no seu olhar que deve ser a do condenado à morte quando se atira à sua última refeição. Peter andava inquieto, nervoso, inconformado.
Tomo era o oposto do Peter: seráfico, imperturbável, introspectivo e sem voo de regresso marcado. Tal como o Peter, caminhava para leste: só que leste, para o Tomo, era a direcção contrária à da sua casa. Enquanto Peter acumulara um bolo monetário e ao longo de um ano gastara-o, estando já nas migalhas, o Tomo viajava com migalhas. Trazia um cartaz consigo e um banco. O cartaz dizia: «Massagens shiatsu, dez dólares – vinte minutos.» O banco era onde os clientes se sentavam. Tomo estacionava nas praças centrais das aldeias do mundo e esperava pelos clientes. Quando tinha migalhas suficientes, Tomo prosseguia mais uns quilómetros. Sem pressas.
Eu estava no meio destes dois modos de viajar. Tinha bilhete de regresso, mas cada regresso era também uma nova partida. Viajava não pela viagem em si, como eles, mas pelo projecto de trabalho que ela proporcionava: na altura, uma reportagem para uma revista; anos depois, a biografia de um navegador para um livro; actualmente, um documentário para a RTP2. O Peter tinha o horizonte fechado, o Tomo tinha-o aberto. Eu tinha de abrir horizontes com cada novo projecto de viagem, cada nova reportagem, cada novo livro ou documentário. O Peter era o destino, o Tomo era a viagem. Eu era a viagem com destino.
Tantos anos depois, quem sabe por onde andará cada um deles? Terá Peter partido para uma nova viagem? Terá Tomo encontrado uma chegada? Eu continuo a dar significado a cada partida com a chegada, a dar uma razão a cada viagem com o seu destino, a financiar cada errância geográfica com uma severa rotina profissional. Três entradas possíveis numa qualquer enciclopédia com a tipologia do viajante.
Gonçalo Cadilhe (2011). Três Mochileiros em Huahine. Encontros Marcados. Lisboa: Clube do Autor. pp. 37-38.
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