Uma palavra que durante décadas não seja utilizada na
rua ou nos livros e permaneça apenas no dicionário tem um destino à vista: ser
palavra-defunta. O dicionário pode ser visto, assim, como uma antecâmara da
morte. Como se algumas palavras estivessem ali paradinhas, quietas, mudas (no
sentido literal e metafórico) porque não falam, ninguém fala por elas e ninguém
as fala – com se estivessem, então, ali em fila, em linha, à espera do seu
próprio velório.
Ou podemos então mudar radicalmente de ponto de vista: o dicionário com
os seus milhares e milhares de palavras, pode ser entendido como um depósito
contra o esquecimento, um enorme arquivo. Eis, pois, um outro nome possível
para o dicionário: instrumento para evitar o esquecimento.
Imaginemos, por absurdo, que os dicionários desapareciam. Que uma
qualquer ordem política determinava a sua destruição. Pois bem, seria uma
matança. Em poucas décadas morreriam palavras como tordos. E se, no limite,
não existisse qualquer livro, e ficássemos apenas […] com a linguagem das
conversas rápidas, então o vocabulário ficaria reduzido ao mais essencial e
mínimo: sim, não, comida, bebida, etc. Poderíamos assim, com a linguagem,
expressar as necessidades do organismo mas certamente não as do espírito.
Abrir o dicionário, pois, como ato de resistência e salvação: não vou
ficar só com as palavras que ouço ou leio nos livros comuns – eis o que se
poderia dizer. Abrimos ao acaso na página 310, e depois na página 315, sempre
com a firme determinação de salvar duas ou três palavras de cada página. Como
aquele que salva quem se está a afogar. E não é por acaso, aliás, que muitas
das mitologias remetem o esquecimento para a imagem do rio. Uma água onde as
coisas se afundam, deixam de ser vistas à superfície, desaparecem da vista. A
passagem do rio utilizada também como metáfora do tempo que passa e leva e
afunda as coisas que ainda há momentos estavam à nossa frente, bem vivas.
Salvar palavras da água que engole e faz esquecer as coisas, eis o que é, em
parte, abrir um dicionário.
Dotados, então, de um espírito de nadador-salvador, abrimos ao acaso o
dicionário e trazemos palavras mais ou menos raras – umas que já nadam há muito
debaixo de água, com dificuldades, outras, mais resistentes, mais visíveis, mas
ainda estimulantes (e algumas bem conhecidas dos nossos clássicos).
Passemos pela letra M. Ao acaso e rapidamente.
Morato – adjetivo que significa bem organizado.
Maçaruco – (regionalismo) indivíduo mal trajado.
Manajeiro – aquele que dirige o trabalho das ceifas os outros.
Metuendo – que mete medo; terrível; medonho.
E tropeçamos depois em palavras de significado popular e óbvio, mas bem
divertido:
Mata-sãos: médico incompetente; curandeiro.
Eis, pois, a partir daqui, uma frase possível que quase poderíamos
introduzir numa conversa de café (uma frase em letra M):
- O manajeiro metuendo, maçaruco, aproximou-se do morato espaço do
mata-sãos e disse: por favor, aqui não, vá curar mais além.
Fonte: Gonçalo M. Tavares, Visão, 22 de setembro de 2011
Sem comentários:
Enviar um comentário