“Viajar serve para encontrar o que não se procura.”
(Gonçalo Cadilhe)
Até Setembro!
Viagem a Portugal
de
José Saramago
[excerto]
DE NORDESTE A NOROESTE, DURO E DOURADO
O sermão aos peixes
De memória de guarda da fronteira, nunca tal se viu. Este é o primeiro viajante que no meio do caminho pára o automóvel, tem o motor já em Portugal, mas não o depósito da gasolina, que ainda está em Espanha, e ele próprio assoma ao parapeito naquele exacto centímetro por onde passa a invisível linha da fronteira. Então, sobre as águas escuras e profundas, entre as altas escarpas que vão dobrando os ecos, ouve-se a voz do viajante, pregando aos peixes do rio:
«Vinde cá, peixes, vós da margem direita que estais no rio Douro, e vós da margem esquerda que estais no rio Duero, vinde cá todos e dizei-me que língua é a que falais quando aí em baixo cruzais as aquáticas alfândegas, e se também lá tendes passaportes e carimbos para entrar e sair. Aqui estou eu, olhando para vós do alto desta barragem, e vós para mim, peixes que viveis nessas confundidas águas, que tão depressa estais duma banda como da outra, em grande irmandade de peixes que uns aos outros só se comem por necessidade de fome e não por enfados de pátria. Dais-me vós, peixes, uma clara lição, oxalá não a vá eu esquecer ao segundo passo desta minha viagem a Portugal, convém a saber: que de terra em terra deverei dar muita atenção ao que for igual e ao que for diferente, embora ressalvando, como humano é, e entre vós igualmente se pratica, as preferências e as simpatias deste viajante, que não está ligado a obrigações de amor universal, nem isso lhe pediu. De vós, enfim, me despeço, peixes, até um dia, ide à vossa vida enquanto por aí não vêm os pescadores, nadai felizes, e desejai-me boa viagem, adeus, adeus.»
José Saramago [1981]. Viagem a Portugal. Lisboa: Editorial Caminho. p. 7.
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