sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Manuel Alegre, "A Desconhecida"


Está tudo perdido, dizia ela, está tudo perdido. E corria pela estrada fora. Tinham-na visto muitas vezes a vaguear, com uns vestidos esfarrapados, os pés descalços, ora pelas feiras, ora à porta dos cafés, mas agora ela corria, fugia não se sabe ao certo nem de quê nem de quem, Está tudo perdido, dizia, farrapos brancos a esvoaçar, cabelos desgrenhados, não se sabia de quem era filha nem onde tinha nascido nem quando, corria pela estrada fora, trazia atrás de si invisíveis perseguidores, fugia de perigos que só ela conhecia, Está tudo perdido, dizia ela, está tudo perdido.
Quando os bombeiros a recolheram das águas frias e barrentas do rio, juntou-se muito povo no largo da vila. Mas ninguém apareceu a reclamar o corpo. Durante vários dias comentou-se o sucedido. Uma lenda começou a nascer, alguns insinuavam que era a filha desaparecida de um conde, outros, uma noiva de uma terra próxima que há muitos anos tinha fugido no dia do casamento, houve até quem dissesse que ela era estrangeira e por isso ninguém conhecia pais nem parentes.
No dia do funeral apareceu no cemitério um velho muito velho surgido não se sabe de onde. Antes de fecharem o caixão, ele aproximou-se, afagou-lhe os cabelos grisalhos que talvez tivessem sido louros e alisou as vestes rotas e sujas, outrora talvez brancas. Colocou-lhe uma rosa nas mãos e alguém o ouviu a chorar enquanto murmurava o nome que ninguém sabia: Ofélia, dizia o velho, Ofélia.

Manuel Alegre (2005). A Desconhecida. In: O Quadrado e outros contos.
Lisboa: Dom Quixote, pp. 23 – 24.

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