̶ Tudo morto. Tudo morto. O alferes Abílio morreu. Está tudo cheio de mortos.
O furriel enfermeiro estremeceu todo e pareceu acordar de repente. Levava de rojo a arma e a bolsa de medicamentos, e havia então no seu rosto a enegrecida energia dos profetas e dos loucos, a sua coragem apavorada – e eu tive logo a certeza de que ele iria ressuscitar todos os mortos ou inventar novamente os vivos. Tropeçou contudo no primeiro cadáver e estatelou-se ao comprido no solo. Foda-se, Foda-se, Foda-se, disse ele ao tentar recompor-se da queda sobre o morto. Deitado de borco, com a arma abraçada ao peito, o corpo do alferes Abílio recebeu com indiferença o seu desespero e recuperou a rigidez. Erguendo-se de repelão, o furriel ficou a olhá-lo e não pôde logo acreditar no que via. Um insignificante fio de sangue coagulara-lhe na raiz do pescoço, junto à clavícula esquerda, e não havia mais nada. Uma bicada de pássaro, pensou, uma distraída mordedura de cobra ou tão-só o voo errado de uma abelha – mas isso não podia ser a morte daquele homem. O furriel voltou-lhe então o rosto e viu o resto: o buraco de uma facada rasgara-lhe metade do crânio, e eram pedacinhos de ossos, carnes dependuradas e em farrapos e golfadas de sangue que empapavam a terra e pareciam esguichar uma rede espumosa e gorda. Tentou em vão fechar-lhe os olhos. As dobradiças daquelas pálpebras já não podiam obedecer aos seus dedos nem às suas experimentadas mãos de fada com avental de Deus, e o furriel enfermeiro recordou depressa o seu passado: no seminário, alguns séculos antes de o mandarem à guerra, os padres tinham-no ensinado a rezar em latim. Podia encher-se agora dos ancestrais ritos sagrados, vestir de novo a sobrepeliz do luto eclesiástico e assumir até a calma dos gordos padres da sua infância. Podia agora imitar o ar fanático da seita, servir-se do hissope e da água-benta e dizer: requiem arternam dona eis, Domine. Contudo, esquecera-se quase completamente do como se rezava. Sabia que esses padres utilizavam a mesma água para benzer os barcos que traziam os soldados para a guerra e também os barcos que os devolviam mortos à pátria dos seus bispos. Além disso, tinha quase a certeza de que Deus não existia…
- Acuda-me, meu furriel! Pela sua saudinha, meu furriel, salve-me. Acuda-me, que tenho mulher e três filhos.
Estava ele estendido numa vala e o seu ventre era um balão de tripas que fumegavam e expeliam sangue e fezes através do tecido do dólman. Os seus lábios quase brancos mal se moviam, mas os olhos navegavam à tona do mundo e seguiam todos os movimentos do furriel enfermeiro. Agora, pensei, estou pronto para endoidecer. Não vou poder ouvir mais nada durante o resto da minha vida; não vou poder acordar nenhuma outra manhã sem ter de ouvir aquela voz de sino que morria suplicando o socorro de todas as mãos do mundo. Nunca mais haverá para mim outra oportunidade de admirar o sol, o mar, a chegada dos pássaros. Ouvirei apenas o murmúrio quase subterrâneo da voz do Gonçalves com as mãos inertes a segurarem o seu balão de tripas, Pelo amor de Deus, meu furriel, Pelo amor de Deus, meu furriel, Pelo amor de Deus, meu furriel, Uma mulher e três filhos, Três filhos e uma mulher, Uma mulher… E nunca mais haverá uma manhã assim, que não tenha de repetir-se até à completa declaração da minha loucura.
João de Melo (1984). Autópsia de um Mar de Ruínas. Lisboa: Assírio e Alvim. pp. 115-6.
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