Para a Alexandra Lucas Coelho
Jorge Luís Borges soube que tinha morrido quando, tendo fechado os olhos para melhor escutar o longínquo rumor da noite crescendo sobre Genebra, começou a ver. Distinguiu primeiro uma luz vermelha, muito intensa, e compreendeu que era o fulgor do sol filtrado pelas suas pálpebras. Abriu os olhos, inclinou o rosto, e viu uma fileira de densas sombras verdes. Estava estendido de costas numa plantação de bananeiras.
Aquilo deixou-o de mau humor. Bananeiras?! Ele sempre imaginara o paraíso como uma enorme biblioteca: uma sucessão interminável de corredores, escadas e outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e todos eles com livros empilhados até ao tecto.
Levantou-se. Endireitou-se com dificuldade, sentindo-se desconfortável dentro do próprio corpo subitamente rejuvenescido (quando morremos reencarnamos jovens e Borges já não se recordava de como isso era). Caminhou devagar entre as bananeiras. Parecia-lhe pouco provável encontrar ali alguém conhecido, ou seja, alguém de quem tivesse lido algo. Ou alguém sobre quem tivesse lido algo. Nesse caso seria alguém um
pouco menos conhecido, ou um pouco menos alguém, ou ambas as coisas.
A plantação prolongava-se por toda a eternidade. Uma dúvida começou a atormenta-lo: talvez estivesse, afinal, não no paraíso, mas no inferno. Para onde quer que olhasse só avistava as largas folhas verdes, os pesados cachos amarelos, e sobre essa idêntica paisagem um céu imensamente azul. Borges lamentava a ausência de livros. Se ao menos existissem tigres — tigres metafóricos, claro, com um alfabeto secreto gravado nas manchas do dorso —, se houvesse algures um labirinto, ou uma esquina cor-de-rosa (bastava-lhe a esquina), mas não: só avistava bananeiras, bananeiras, ainda bananeiras. Bananeiras a perder de vista.
Percorreu sem cansaço, mas com crescente fastio, a infinita plantação. Era com se andasse em círculos. Era com se não andasse. Fazia-lhe falta a cegueira.
Cego, o que não via tinha mais cores do que aquilo — além do mistério, claro. Como é que um homem morre na Suíça e ressuscita para a vida eterna entre bananeiras?
Borges não gostava da América Latina. A Argentina, com se sabe, é um país europeu (ou quase) que por desgraça faz fronteira com o Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai. Para Borges aquele quase foi sempre um espinho cravado no fundo da alma. Isso e a vizinhança. Os índios ainda ele tolerava. Tinham fornecido bons motivos para a literatura e além disso estavam mortos. O pior eram as negras e os mestiços, gente capaz de transformar o grande drama da vida — da vida, meu Deus! — numa festa ruidosa. Borges sentia-se europeu. Gostava de ler os clássicos gregos (gostaria de os ter lido em grego). Gostava do silêncio poderoso das velhas catedrais.
Foi então que a viu. À sua frente urna mulher flutuava, pálida e nua, sobre as bananeiras. A mulher dormia, com o rosto voltado para o sol e as mãos pousadas sobre os seios, e era belíssima, mas isso para Borges não tinha grande importância (a especialidade dele foram sempre os tigres). Horrorizado compreendeu o equívoco. Deus confundira-o com outro escritor latino-americano. Aquele paraíso fora construído, só podia ter sido construído, a pensar em Gabriel Garcia Marquez.
Jorge Luís Borges sentou-se sobre a terra húmida. Levantou o braço, colheu uma banana, descascou-a e comeu-a. Pensou em Gabriel Garcia Marquez e voltou a experimentar o intolerável tormento da inveja. Um dia o escritor colombiano fechará os olhos, para melhor escutar o rumor longínquo da noite, e quando os reabrir estará deitado de costas sobre o lajedo frio de uma biblioteca. Caminhará pelos corredores, subirá escadas, atravessará outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e em todos eles encontrará livros, milhares, milhões de livros. Um labirinto infinito, forrado de estantes até ao tecto, e nessas estantes todos os livros escritos e por escrever, todas as combinações possíveis de palavras em todas as línguas dos homens.
Jorge Luís Borges descascou outra banana e nesse momento um sorriso — ou algo como um sorriso iluminou-lhe o rosto. Começava a adivinhar naquele equívoco um inesperado sentido: sendo certo que o paraíso do outro era agora o inferno dele, então o paraíso dele deveria ser, certamente, o inferno do outro.
Borges terminou de descascar a banana e comeu-a. Era boa. Era um bom inferno, aquele.
AGUALUSA, José Eduardo, 1960 - A Substância do amor e outras crónicas. Lisboa: Dom Quixote, 2000
Biografia e obra de José Eduardo Agualusa em http://www.agualusa.info/
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