quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Boris Vian, Excerto de "As Formigas"


Chegámos esta manhã e fomos mal recebidos porque não havia ninguém na praia, só uma data de tipos mortos ou bocados de tipos, tanques e camiões desfeitos. De todo o lado apareciam balas, e confusões destas eu não gramo. Saltámos para a água mas era mais fundo do que parecia, e escorreguei numa lata de conservas. O tipo que ia atrás de mim ficou quase sem cara, arrancou-lha um balásio que nos mandaram e eu guardei os bocados da cara no capacete e ofereci-lhos, o tipo lá se foi ao curativo mas parece que não deu com o caminho porque se meteu na água até quase não ter pé, e eu cá não acredito que ele visse o fundo de maneira a não ficar perdido.
Depois corri na direcção certa e ainda cheguei a tempo de apanhar com uma perna na fronha. Apeteceu-me dizer umas coisas ao tipo, mas a mina só tinha deixado ficar uns bocados difíceis de recompor e por isso não liguei nada àquele procedimento e continuei.
Dez metros à frente juntei-me a três fulanos que ali estavam, atrás de um bloco de betão. Davam tiros à esquina de uma parede mais adiante, suavam que se fartavam, todos encharcados, eu devia estar na mesma e ajoelhei-me e desatei também aos tiros. Chegou o tenente. Vinha agarrado à cabeça e escorria-me vermelho da boca. Fazia uma cara de poucos amigos e estendeu-se logo na areia, de boca aberta e braços para a frente. Boa porcaria aquilo deve ter ficado. Era dos poucos lugares que ainda não estava sujo.
Visto dali, o nosso barco encalhado era uma coisa mesmo estúpida, e depois, quando lhe acertaram com duas granadas, nem ar de barco já tinha. Aquilo não me caiu bem porque dentro dele dois amigos ainda tentavam levantar-se para saltar mais as balas que lhes tinham acertado. Bati no ombro dos três que andavam aos tiros comigo, e disse: «Venham daí.» Claro que os mandei à frente, e pouco faltou para eu ficar sem cabeça porque o primeiro e o segundo foram-se à viola com os fogachos que os tais dois tipos nos mandavam, à minha frente só restava um, pobre rapaz sem sorte nenhuma, que mal deu cabo do mais bera o outro arranjou tempo para matá-lo antes de eu poder tratar-lhe da saúde.
O par de sacanas tinha uma metralhadora e cartuchos em barda, atrás da esquina do muro. Apontei a metralhadora em sentido contrário, carreguei a fundo naquilo mas tive que parar porque me dava cabo dos ouvidos e encravou. Devem ser reguladas para não dispararem na direcção oposta.
Ali estava a bem dizer sossegado. Do alto da praia era possível gozar o panorama. O mar deitava um fumo dos diabos e a água dava espirros muito altos. Também se viam os clarões das salvas dos grandes couraçados, e as bombas passavam por cima da minha cabeça com um barulho esquisito e abafado, como o som grave de um cilindro que andasse por aquele ar fora.
Chegou o capitão. Só restavam onze. Disse que não eram lá muitos mas assim mesmo nos íamos desenrascar. Mais tarde enviaram os que faltavam. Para já, mandou-nos cavar buracos. São para a gente dormir, pensava eu, mas afinal não eram nada, tivemos de saltar-lhes para dentro e continuar a atirar.
Por sorte aquilo melhorava. Começavam a desembarcar de uma data de barcos mas os peixes metiam-se no meio das pernas para se vingarem daquela barafunda, e a maior parte malhava na água e levantavam-se, a bufar que era um caso sério. Mas alguns não se levantavam nada e lá iam a flutuar nas ondas, e o capitão disse que avançássemos atrás do tanque e neutralizássemos aquele ninho de metralhadoras que começava a dar sinal.
Fomos atrás do tanque. Eu em último lugar porque não me fio lá muito no travão daquelas geringonças. É mais cómodo andar atrás de um tanque, porque assim não é preciso a gente embaraçar-se nos arames-farpados e os postes caem por si. O que eu não gostava era do modo como espapaçavam os cadáveres, fazendo o diabo de um ruído muito característico que só de recordar nos põe doentes.
Boris Vian (1984). As Formigas. Trad Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio e Alvim. pp. 17-18.
[excerto do conto “As Formigas”, publicado pela primeira vez em 1949]

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