segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Quino



Quino(1998). Que gente tão mazinha! Venda Nova: Bertrand Editora, p. 108.


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Banksy

Quatro pinturas do street artist inglês Banksy no muro que separa Israel da Palestina.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

João de Melo, Excerto de "Autópsia de um mar de ruínas"


̶  Tudo morto. Tudo morto. O alferes Abílio morreu. Está tudo cheio de mortos.
O furriel enfermeiro estremeceu todo e pareceu acordar de repente. Levava de rojo a arma e a bolsa de medicamentos, e havia então no seu rosto a enegrecida energia dos profetas e dos loucos, a sua coragem apavorada – e eu tive logo a certeza de que ele iria ressuscitar todos os mortos ou inventar novamente os vivos. Tropeçou contudo no primeiro cadáver e estatelou-se ao comprido no solo. Foda-se, Foda-se, Foda-se, disse ele ao tentar recompor-se da queda sobre o morto. Deitado de borco, com a arma abraçada ao peito, o corpo do alferes Abílio recebeu com indiferença o seu desespero e recuperou a rigidez. Erguendo-se de repelão, o furriel ficou a olhá-lo e não pôde logo acreditar no que via. Um insignificante fio de sangue coagulara-lhe na raiz do pescoço, junto à clavícula esquerda, e não havia mais nada. Uma bicada de pássaro, pensou, uma distraída mordedura de cobra ou tão-só o voo errado de uma abelha – mas isso não podia ser a morte daquele homem. O furriel voltou-lhe então o rosto e viu o resto: o buraco de uma facada rasgara-lhe metade do crânio, e eram pedacinhos de ossos, carnes dependuradas e em farrapos e golfadas de sangue que empapavam a terra e pareciam esguichar uma rede espumosa e gorda. Tentou em vão fechar-lhe os olhos. As dobradiças daquelas pálpebras já não podiam obedecer aos seus dedos nem às suas experimentadas mãos de fada com avental de Deus, e o furriel enfermeiro recordou depressa o seu passado: no seminário, alguns séculos antes de o mandarem à guerra, os padres tinham-no ensinado a rezar em latim. Podia encher-se agora dos ancestrais ritos sagrados, vestir de novo a sobrepeliz do luto eclesiástico e assumir até a calma dos gordos padres da sua infância. Podia agora imitar o ar fanático da seita, servir-se do hissope e da água-benta e dizer: requiem arternam dona eis, Domine. Contudo, esquecera-se quase completamente do como se rezava. Sabia que esses padres utilizavam a mesma água para benzer os barcos que traziam os soldados para a guerra e também os barcos que os devolviam mortos à pátria dos seus bispos. Além disso, tinha quase a certeza de que Deus não existia…
-      Acuda-me, meu furriel! Pela sua saudinha, meu furriel, salve-me. Acuda-me, que tenho mulher e três filhos.
Estava ele estendido numa vala e o seu ventre era um balão de tripas que fumegavam e expeliam sangue e fezes através do tecido do dólman. Os seus lábios quase brancos mal se moviam, mas os olhos navegavam à tona do mundo e seguiam todos os movimentos do furriel enfermeiro. Agora, pensei, estou pronto para endoidecer. Não vou poder ouvir mais nada durante o resto da minha vida; não vou poder acordar nenhuma outra manhã sem ter de ouvir aquela voz de sino que morria suplicando o socorro de todas as mãos do mundo. Nunca mais haverá para mim outra oportunidade de admirar o sol, o mar, a chegada dos pássaros. Ouvirei apenas o murmúrio quase subterrâneo da voz do Gonçalves com as mãos inertes a segurarem o seu balão de tripas, Pelo amor de Deus, meu furriel, Pelo amor de Deus, meu furriel, Pelo amor de Deus, meu furriel, Uma mulher e três filhos, Três filhos e uma mulher, Uma mulher… E nunca mais haverá uma manhã assim, que não tenha de repetir-se até à completa declaração da minha loucura.
João de Melo (1984). Autópsia de um Mar de Ruínas. Lisboa: Assírio e Alvim. pp. 115-6.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Boris Vian, Excerto de "As Formigas"


Chegámos esta manhã e fomos mal recebidos porque não havia ninguém na praia, só uma data de tipos mortos ou bocados de tipos, tanques e camiões desfeitos. De todo o lado apareciam balas, e confusões destas eu não gramo. Saltámos para a água mas era mais fundo do que parecia, e escorreguei numa lata de conservas. O tipo que ia atrás de mim ficou quase sem cara, arrancou-lha um balásio que nos mandaram e eu guardei os bocados da cara no capacete e ofereci-lhos, o tipo lá se foi ao curativo mas parece que não deu com o caminho porque se meteu na água até quase não ter pé, e eu cá não acredito que ele visse o fundo de maneira a não ficar perdido.
Depois corri na direcção certa e ainda cheguei a tempo de apanhar com uma perna na fronha. Apeteceu-me dizer umas coisas ao tipo, mas a mina só tinha deixado ficar uns bocados difíceis de recompor e por isso não liguei nada àquele procedimento e continuei.
Dez metros à frente juntei-me a três fulanos que ali estavam, atrás de um bloco de betão. Davam tiros à esquina de uma parede mais adiante, suavam que se fartavam, todos encharcados, eu devia estar na mesma e ajoelhei-me e desatei também aos tiros. Chegou o tenente. Vinha agarrado à cabeça e escorria-me vermelho da boca. Fazia uma cara de poucos amigos e estendeu-se logo na areia, de boca aberta e braços para a frente. Boa porcaria aquilo deve ter ficado. Era dos poucos lugares que ainda não estava sujo.
Visto dali, o nosso barco encalhado era uma coisa mesmo estúpida, e depois, quando lhe acertaram com duas granadas, nem ar de barco já tinha. Aquilo não me caiu bem porque dentro dele dois amigos ainda tentavam levantar-se para saltar mais as balas que lhes tinham acertado. Bati no ombro dos três que andavam aos tiros comigo, e disse: «Venham daí.» Claro que os mandei à frente, e pouco faltou para eu ficar sem cabeça porque o primeiro e o segundo foram-se à viola com os fogachos que os tais dois tipos nos mandavam, à minha frente só restava um, pobre rapaz sem sorte nenhuma, que mal deu cabo do mais bera o outro arranjou tempo para matá-lo antes de eu poder tratar-lhe da saúde.
O par de sacanas tinha uma metralhadora e cartuchos em barda, atrás da esquina do muro. Apontei a metralhadora em sentido contrário, carreguei a fundo naquilo mas tive que parar porque me dava cabo dos ouvidos e encravou. Devem ser reguladas para não dispararem na direcção oposta.
Ali estava a bem dizer sossegado. Do alto da praia era possível gozar o panorama. O mar deitava um fumo dos diabos e a água dava espirros muito altos. Também se viam os clarões das salvas dos grandes couraçados, e as bombas passavam por cima da minha cabeça com um barulho esquisito e abafado, como o som grave de um cilindro que andasse por aquele ar fora.
Chegou o capitão. Só restavam onze. Disse que não eram lá muitos mas assim mesmo nos íamos desenrascar. Mais tarde enviaram os que faltavam. Para já, mandou-nos cavar buracos. São para a gente dormir, pensava eu, mas afinal não eram nada, tivemos de saltar-lhes para dentro e continuar a atirar.
Por sorte aquilo melhorava. Começavam a desembarcar de uma data de barcos mas os peixes metiam-se no meio das pernas para se vingarem daquela barafunda, e a maior parte malhava na água e levantavam-se, a bufar que era um caso sério. Mas alguns não se levantavam nada e lá iam a flutuar nas ondas, e o capitão disse que avançássemos atrás do tanque e neutralizássemos aquele ninho de metralhadoras que começava a dar sinal.
Fomos atrás do tanque. Eu em último lugar porque não me fio lá muito no travão daquelas geringonças. É mais cómodo andar atrás de um tanque, porque assim não é preciso a gente embaraçar-se nos arames-farpados e os postes caem por si. O que eu não gostava era do modo como espapaçavam os cadáveres, fazendo o diabo de um ruído muito característico que só de recordar nos põe doentes.
Boris Vian (1984). As Formigas. Trad Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio e Alvim. pp. 17-18.
[excerto do conto “As Formigas”, publicado pela primeira vez em 1949]

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Pablo Picasso, "Guernica"



Pablo Picasso

Guernica
1937
 Óleo sobre tela. 350 X 782cm
site WLA War, Literature and the Arts WLA
 
Picasso en acción



Bombardeamento de Guernica
 

A 3D exploration of Picasso's Guernica by Lena Gieseke



Marcelo R Ortiz (2002). G.U.E.R.N.I.C.A. Vancouver Film School: animação CGI (Computer –Generated Imagery) – “viagem” tridimensional por obras de Van Gogh, Dali, Escher e Picasso, inspirado no famoso painel da autoria deste último

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

SOL, "Ataque da NATO mata 12 crianças no Afeganistão"

Um bombardeamento da NATO matou 14 pessoas, todas civis, na província de Helmand, no sudoeste do Afeganistão, segundo informações das autoridades locais citadas pela BBC.
O ataque, realizado no distrito de Nawzad, tinha como alvo um grupo de insurgentes, mas acabou por atingir duas casas de civis, matando duas mulheres e 12 crianças. Militares da NATO e do Afeganistão estão a investigar o caso, escreve a BBC.
O ataque ocorreu depois de uma base de fuzileiros norte-americanos ter sido atacada no sábado.
Um grupo de pessoas da aldeia de Sera Cala transportou até à capital de Helmand, Lashkar Gah, os corpos de oito crianças, tendo a mais nova apenas dois anos, como informou o correspondente da BBC em Cabul Quentin Sommerville.
O presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, já criticou a NATO por não fazer o suficiente para prevenir estas mortes e já pediu ao ministro da Defesa que impeça o que descreveu como «operações arbitrárias» das forças internacionais.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Manuel Alegre, "A Desconhecida"


Está tudo perdido, dizia ela, está tudo perdido. E corria pela estrada fora. Tinham-na visto muitas vezes a vaguear, com uns vestidos esfarrapados, os pés descalços, ora pelas feiras, ora à porta dos cafés, mas agora ela corria, fugia não se sabe ao certo nem de quê nem de quem, Está tudo perdido, dizia, farrapos brancos a esvoaçar, cabelos desgrenhados, não se sabia de quem era filha nem onde tinha nascido nem quando, corria pela estrada fora, trazia atrás de si invisíveis perseguidores, fugia de perigos que só ela conhecia, Está tudo perdido, dizia ela, está tudo perdido.
Quando os bombeiros a recolheram das águas frias e barrentas do rio, juntou-se muito povo no largo da vila. Mas ninguém apareceu a reclamar o corpo. Durante vários dias comentou-se o sucedido. Uma lenda começou a nascer, alguns insinuavam que era a filha desaparecida de um conde, outros, uma noiva de uma terra próxima que há muitos anos tinha fugido no dia do casamento, houve até quem dissesse que ela era estrangeira e por isso ninguém conhecia pais nem parentes.
No dia do funeral apareceu no cemitério um velho muito velho surgido não se sabe de onde. Antes de fecharem o caixão, ele aproximou-se, afagou-lhe os cabelos grisalhos que talvez tivessem sido louros e alisou as vestes rotas e sujas, outrora talvez brancas. Colocou-lhe uma rosa nas mãos e alguém o ouviu a chorar enquanto murmurava o nome que ninguém sabia: Ofélia, dizia o velho, Ofélia.

Manuel Alegre (2005). A Desconhecida. In: O Quadrado e outros contos.
Lisboa: Dom Quixote, pp. 23 – 24.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Valter Hugo Mãe, Excerto de "O filho de mil homens"


Subitamente, o rapaz disse que o pai precisava de encontrar uma mulher. O Crisóstomo ficou surpreso, não lhe ocorria preocupar-se mais com essas coisas, estava feliz. Mas o rapaz insistiu. Ia crescer e namorar, talvez casasse, e ao pai ficaria a faltar-lhe algo.
                O Crisóstomo respondeu que não lhe faltava nada, estava inteiro. E o rapaz pequeno disse-lhe que então ele devia passar a ser o dobro. Ser o dobro, disse. O pescador abraçou-o de encontro ao peito. Era o seu filho génio, o que sabia matemática e que sabia fazer caldo verde e domesticar os cães como ninguém. Era o seu filho génio, com as palavras que lhe faltavam, talvez com a coragem que lhe faltava. E o homem sorriu. O pescador sorriu, acabando de redobrar a esperança e julgando que outra vez poderia arriscar o amor.
                À noite, sozinho diante da sua casa, o mar todo apaixonado por si, o homem que chegou aos quarenta anos sentou-se novamente diante da inteligência toda da natureza. Estava ainda de coração partido, porque falhara nos amores e os amores podiam ser tão complicados, mas havia ficado mais forte, agora.
                Quem tem menos medo de sofrer, tem maiores possibilidades de ser feliz.
                O pescador pensou.
                E disse à natureza que queria encontrar uma mulher simples, uma que gostasse de viver numa casa pobre com um pescador humilde que tem um filho que é um génio. Um pescador que, por loucura ou ingenuidade, fala baixinho com a areia. Para ser o dobro e em dobro ter o que fazer da vida e ter o que deixar ao filho.
                No dia seguinte, quando acordava para preparar o pequeno-almoço e mandar o rapaz pequeno à escola, o Crisóstomo viu pela janela da cozinha uma mulher sozinha, sentada com exactidão no lugar onde se sentara ele. A falar sem ninguém e para ninguém. Certamente ali só parcial. Uma mulher incompleta.
                Estava uma mulher a falar sozinha no seu lugar, na sua areia, diante do seu mar, numa brisa fresca que a manhã trazia, as cores ainda muito aguadas da timidez do sol e da limpidez da paisagem.
                O homem que chegou aos quarenta anos sorriu, e aquele sorriso já não era o mesmo do dia anterior. Já não era como nenhum outro do passado. Era o dobro de um sorriso.

Valter Hugo Mãe (2011). O filho de mil homens. Carnaxide: Alfaguara, pp. 25, 26.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Patrick Süskind, Excerto de "O Perfume"


[…] Sim, era preciso que o amassem, quando estivessem debaixo do sortilégio do seu perfume; não apenas que o aceitassem como um deles, mas que o amassem até à loucura, até ao auto-sacrifício, que estremecessem de delírio, que gritassem, que chorassem de volúpia sem saber porquê, era preciso que caíssem de joelhos como ante o odor frio de Deus, sempre que o cheirassem, a ele, Grenouille! Tencionava ser o deus omnipotente do perfume, como o havia sido nas suas fantasias, mas que esta omnisciência se exercesse, doravante, no mundo real e em seres humanos reais. E sabia que isso estava nas suas mãos. De facto, os homens podiam fechar os olhos ante a grandiosidade, ante o louvor, ante a beleza e fechar os ouvidos a melodias ou palavras lisonjeiras. Não podiam, no entanto, furtar-se ao odor, dado que o odor era o irmão da respiração. Penetrava nos homens em simultâneo com ela; não podiam erguer-lhe obstáculos, caso lhes interessasse viver. E o odor penetrava directamente neles até ao coração e ali tomava decisões sobre a simpatia e o desprezo, a repugnância e o desejo, o amor e o ódio. Quem controla os odores, controlava o coração dos homens. […]

Patrick Süskind (1996). O Perfume. História de um Assassino. Lisboa: Editorial Presença, p. 171.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

António Gedeão, "Calçada de Carriche"


Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.

Anda Luísa,

Luísa sobe,
sobe que sobe,

sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,

larga que larga,
puxa que puxa,

larga que larga,
puxa que puxa,

larga que larga,
puxa que puxa,

larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga,
puxa que puxa,

larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda Luísa,

Luísa sobe,
sobe que sobe,

sobe a calçada,

sobe que sobe,

sobe a calçada,

sobe que sobe,

Anda Luísa,

Luísa sobe,
sobe que sobe,

sobe a calçada.

António Gedeão (2007). «Calçada de Carriche». In: Obra Completa, 2.ª ed. Lisboa: Relógio d’Água, pp. 141-143.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Mário Cesariny, "História de cão"



eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

então ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada


Mário Cesariny (1981). manual de prestidigitação. Lisboa: assírio e alvim, pp. 22-23.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Miguel Torga, "Livro de Horas"


Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
Miguel Torga (2002). Livro de Horas. In: Miguel Torga – Poesia Completa I. Casais de Mem Martins: Círculo de Leitores, pp. 81–82.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Excerto do discurso de Steve Jobs na Universidade de Stanford (2005)


The first story is about connecting the dots. I dropped out of Reed College after the first six months, but then stayed around as a drop-in for another 18 months or so before I really quit. So why did I drop out?
It started before I was born. My biological mother was a young, unwed graduate student, and she decided to put me up for adoption. She felt very strongly that I should be adopted by college graduates, so everything was all set for me to be adopted at birth by a lawyer and his wife except that when I popped out they decided at the last minute that they really wanted a girl.
So my parents, who were on a waiting list, got a call in the middle of the night asking, "We've got an unexpected baby boy; Do you want him?" They said, "Of course." My biological mother found out later that my mother had never graduated from college and that my father had never graduated from high school. She refused to sign the final adoption papers. She only relented a few months later when my parents promised that I would go to college. This was the start in my life.
And 17 years later I did go to college. But I naively chose a college that was almost as expensive as Stanford, and all of my working-class parents' savings were being spent on my college tuition. After six months, I couldn't see the value in it. I had no idea what I wanted to do with my life and no idea how college was going to help me figure it out. And here I was spending all of the money my parents had saved their entire life.
So I decided to drop out and trust that it would all work out okay. It was pretty scary at the time, but looking back it was one of the best decisions I ever made. The minute I dropped out I could stop taking the required classes that didn't interest me, and begin dropping in on the ones that looked far more interesting.
It wasn't all romantic. I didn't have a dorm room, so I slept on the floor in friends' rooms. I returned coke bottles for the five cent deposits to buy food with, and I would walk the seven miles across town every Sunday night to get one good meal a week at the Hare Krishna temple. I loved it. And much of what I stumbled into by following my curiosity and intuition turned out to be priceless later on.
Let me give you one example:
Reed College at that time offered perhaps the best calligraphy instruction in the country. Throughout the campus every poster, every label on every drawer, was beautifully hand calligraphed. Because I had dropped out and didn't have to take the normal classes, I decided to take a calligraphy class to learn how to do this. I learned about serif and san serif typefaces, about varying the amount of space between different letter combinations, about what makes great typography great. It was beautiful, historical, artistically subtle in a way that science can't capture, and I found it fascinating.
None of this had even a hope of any practical application in my life. But ten years later, when we were designing the first Macintosh computer, it all came back to me. And we designed it all into the Mac. It was the first computer with beautiful typography. If I had never dropped in on that single course in college, the "Mac" would have never had multiple typefaces or proportionally spaced fonts. And since Windows just copied the Mac, it's likely that no personal computer would have them. If I had never dropped out, I would have never dropped in on that calligraphy class, and personal computers might not have the wonderful typography that they do. Of course it was impossible to connect the dots looking forward when I was in college. But it was very, very clear looking backwards 10 years later.
Again, you can't connect the dots looking forward; you can only connect them looking backwards. So you have to trust that the dots will somehow connect in your future. You have to trust in something your gut, destiny, life, karma, whatever because believing that the dots will connect down the road will give you the confidence to follow your heart, even when it leads you off the wellworn path, and that will make all the difference.

Steve Jobs (2005). Steve Job’s Convocation Speech (Stanford) (12.06.2005). Disponível em: http://www.lifeofexcellence.com/audio/SteveJobs_StandfordConvocationSpeech.pdf (acedido a 7 de Outubro de 2011).


sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Diana Loomans, "If I Had My Child to Raise Over Again"


If I had my child to raise over again,

I'd finger paint more, and point the finger less.

I'd do less correcting, and more connecting.

I'd take my eyes off my watch, and watch with my eyes.

I would care to know less, and know to care more.

I'd take more hikes and fly more kites.

I'd stop playing serious, and seriously play.

I'd run through more fields, and gaze at more stars.

I'd do more hugging, and less tugging.

I would be firm less often, and affirm much more.

I'd build self-esteem first, and the house later.

I'd teach less about the love of power,

And more about the power of love.

From Diana Loomans (2003). 100 Ways to Build Self-Esteem & Teach Values.
Tiburon, California: H.J. Kramer/New World Library. p. 216.

Personal development trainer Diana Loomans’ webpage http://www.dianaloomans.com/index.php

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

José Eduardo Agualusa, "Borges no Inferno"


Para a Alexandra Lucas Coelho
Jorge Luís Borges soube que tinha morrido quando, tendo fechado os olhos para melhor escutar o longínquo rumor da noite crescendo sobre Genebra, começou a ver. Distinguiu primeiro uma luz vermelha, muito intensa, e compreendeu que era o fulgor do sol filtrado pelas suas pálpebras. Abriu os olhos, inclinou o rosto, e viu uma fileira de densas sombras verdes. Estava estendido de costas numa plantação de bananeiras.
Aquilo deixou-o de mau humor. Bananeiras?! Ele sempre imaginara o paraíso como uma enorme biblioteca: uma sucessão interminável de corredores, escadas e outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e todos eles com livros empilhados até ao tecto.
Levantou-se. Endireitou-se com dificuldade, sentindo-se desconfortável dentro do próprio corpo subitamente rejuvenescido (quando morremos reencarnamos jovens e Borges já não se recordava de como isso era). Caminhou devagar entre as bananeiras. Parecia-lhe pouco provável encontrar ali alguém conhecido, ou seja, alguém de quem tivesse lido algo. Ou alguém sobre quem tivesse lido algo. Nesse caso seria alguém um
pouco menos conhecido, ou um pouco menos alguém, ou ambas as coisas.
A plantação prolongava-se por toda a eternidade. Uma dúvida começou a atormenta-lo: talvez estivesse, afinal, não no paraíso, mas no inferno. Para onde quer que olhasse só avistava as largas folhas verdes, os pesados cachos amarelos, e sobre essa idêntica paisagem um céu imensamente azul. Borges lamentava a ausência de livros. Se ao menos existissem tigres — tigres metafóricos, claro, com um alfabeto secreto gravado nas manchas do dorso —, se houvesse algures um labirinto, ou uma esquina cor-de-rosa (bastava-lhe a esquina), mas não: só avistava bananeiras, bananeiras, ainda bananeiras. Bananeiras a perder de vista.
Percorreu sem cansaço, mas com crescente fastio, a infinita plantação. Era com se andasse em círculos. Era com se não andasse. Fazia-lhe falta a cegueira.
Cego, o que não via tinha mais cores do que aquilo — além do mistério, claro. Como é que um homem morre na Suíça e ressuscita para a vida eterna entre bananeiras?
Borges não gostava da América Latina. A Argentina, com se sabe, é um país europeu (ou quase) que por desgraça faz fronteira com o Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai. Para Borges aquele quase foi sempre um espinho cravado no fundo da alma. Isso e a vizinhança. Os índios ainda ele tolerava. Tinham fornecido bons motivos para a literatura e além disso estavam mortos. O pior eram as negras e os mestiços, gente capaz de transformar o grande drama da vida — da vida, meu Deus! — numa festa ruidosa. Borges sentia-se europeu. Gostava de ler os clássicos gregos (gostaria de os ter lido em grego). Gostava do silêncio poderoso das velhas catedrais.
Foi então que a viu. À sua frente urna mulher flutuava, pálida e nua, sobre as bananeiras. A mulher dormia, com o rosto voltado para o sol e as mãos pousadas sobre os seios, e era belíssima, mas isso para Borges não tinha grande importância (a especialidade dele foram sempre os tigres). Horrorizado compreendeu o equívoco. Deus confundira-o com outro escritor latino-americano. Aquele paraíso fora construído, só podia ter sido construído, a pensar em Gabriel Garcia Marquez.
Jorge Luís Borges sentou-se sobre a terra húmida. Levantou o braço, colheu uma banana, descascou-a e comeu-a. Pensou em Gabriel Garcia Marquez e voltou a experimentar o intolerável tormento da inveja. Um dia o escritor colombiano fechará os olhos, para melhor escutar o rumor longínquo da noite, e quando os reabrir estará deitado de costas sobre o lajedo frio de uma biblioteca. Caminhará pelos corredores, subirá escadas, atravessará outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e em todos eles encontrará livros, milhares, milhões de livros. Um labirinto infinito, forrado de estantes até ao tecto, e nessas estantes todos os livros escritos e por escrever, todas as combinações possíveis de palavras em todas as línguas dos homens.
Jorge Luís Borges descascou outra banana e nesse momento um sorriso — ou algo como um sorriso iluminou-lhe o rosto. Começava a adivinhar naquele equívoco um inesperado sentido: sendo certo que o paraíso do outro era agora o inferno dele, então o paraíso dele deveria ser, certamente, o inferno do outro.
Borges terminou de descascar a banana e comeu-a. Era boa. Era um bom inferno, aquele.
AGUALUSA, José Eduardo, 1960 - A Substância do amor e outras crónicas. Lisboa: Dom Quixote, 2000
Biografia e obra de José Eduardo Agualusa em http://www.agualusa.info/

terça-feira, 4 de outubro de 2011

John Grogan, Excerto de "Marley & Eu"


Marley  não abanava apenas a cauda. Abanava o corpo todo, começando pelas partes dianteiras e prolongando todo o movimento para trás. Era como a versão canina de um Slinky. Parecia-nos que não tinha ossos, mas tão-só um grande músculo elástico. Jenny começou a chamar-lhe Mr. Wiggles. E não havia altura em que se abanasse mais do que quando tinha qualquer coisa na boca. A sua reacção a qualquer situação era sempre a mesma: agarrar o sapato ou o lápis mais próximo – qualquer objecto servia, na verdade – e correr com ele. Parecia haver uma pequena voz na sua cabeça a sussurrar-lhe: força! Apanha-o! Baba-o todo! Corre!
Alguns dos objectos que ele apanhava eram suficientemente pequenos para serem dissimulados, o que parecia agradar-lhe especialmente - parecia pensar que estava a conseguir ludibriar-nos. Mas Marley jamais daria um bom jogador de póquer. Quando tinha alguma coisa para esconder, não conseguia disfarçar o seu júbilo. Punha sempre um ar empertigado, até explodir numa espécie de frenesim maníaco, como se tivesse levado um pontapé no traseiro de um folião invisível. O seu corpo começava a tremer, a sua cabeça a abanar de um lado para o outro e o seu traseiro desandava numa espécie de dança espasmódica. Chamávamos a isso o mambo do Marley.
(…)
            A maioria das noites, depois de jantar, saíamos os dois com ele até à marginal, onde caminhávamos ao longo do canal enquanto os iates de Palm  Beach passavam indolentemente ao pôr do Sol.
              Caminhar é provavelmente a palavra errada. Marley passeava como uma locomotiva em fuga. Corria à frente, debatendo-se com a trela com todas as  suas forças, enrouquecendo e quase sufocando na sua obstinação. Nós puxávamo-lo para trás. Ele arrastava-nos para a frente. Nós puxávamos e ele rebocava-nos, arfando como um fumador compulsivo, estrangulado pela coleira. Guiava para a esquerda e para a direita, disparando para todas as caixas de correio e arbustos, farejando, arquejando e urinando descontroladamente, acabando por se molhar mais a si próprio, do que ao alvo pretendido.
            Descrevia círculos à nossa volta, enredando-nos a trela nos tornozelos antes de pular novamente para a frente, quase nos atirando ao chão. Quando alguém se aproximava com outro cão, Marley dardejava em direcção a eles, rejubilante, erguendo-se nas patas detrás quando chegava ao fim da trela, ansioso por fazer novos amigos.
John Grogan (2006). Marley & Eu: A vida e amor do pior cão do mundo.
(Pedro Serras Pereira, Trad.). Lisboa: Casa das Letras. pp. 47-49.

Ilustração inédita de Alexandra Lota*

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Conto Tradicional, "A Tia Miséria"


Havia no princípio do mundo uma velhinha muito pobre e muito infeliz: era conhecida pela Tia Miséria. Só possuía uma casinha arruinada e uma pereira defronte da porta. Tudo sofria com paciência e resignação, mas só uma coisa não desculpava, nem perdoava: que os garotos subissem à pereira e lhe comessem as peras. Era capaz de dá-las todas sem provar uma, mas indignava-se contra os que lhas roubavam.
Uma noite bateu-lhe à porta um pobrezinho; correu a abri-la e deu ao pobrezinho a migalha de pão que reservava para si. No dia seguinte despediu-se o pobre e disse-lhe que pedisse o que quisesse.
Só peço que as pessoas que subirem à minha pereira não possam descer sem o meu consentimento – respondeu a velhinha.
- Assim será – respondeu o mendigo.
No outro dia, quando saiu à rua, encontrou três garotos em cima da pereira.
- Ó Tia Miséria, perdoe-nos pelo amor de Deus! Tire-nos daqui, não podemos descer.
- Ah! Pois vocês diziam que não eram os ladrões das minhas peras! Por esta vez, vá; Se lá voltarem hão-de ficar aí muitos anos.
E os garotos desceram e não mais voltaram à pereira.
Um dia de manhã, entrou-lhe em casa uma mulher de horrendo aspecto, vestida de negro e armada de foice, com as asas negras nos ombros e nos pés.
- O que me quer? – Perguntou a Miséria a tremer.
- Sou a Morte: venho buscar-te.
- Já? Pois nem ao menos me dá um ano de espera?
- Não pode ser – respondeu a Morte.
- Faça-me ao menos um favor: suba à minha pereira e colha-me a última pêra que me resta. Quero comê-la, visto que é a última.
A Morte subiu à pereira, colheu a pêra, mas não pôde descer. Pôs-se a chamar a velhinha. Esta respondeu: “Tem paciência, aí ficarás para todos os séculos. És má, tens feito muitas desgraças, roubando muitos pais aos seus filhos pequeninos...”
E a Morte ficou em cima da pereira.
Passados dias tinha a velhinha em frente da sua porta um exército, composto de padres que se queixavam de que não havia enterros, de escrivães que se lastimavam de não ter inventários, de delegados que se doíam de não fazer promoções orfanológicas, de juízes que se queixavam de não receber emolumentos das reuniões dos conselhos de família, das presidências nos actos de licitações e das sentenças em demarcações, enfim, de todos aqueles indivíduos que vivem da morte do próximo. Todos pediam à velhinha que autorizasse a Morte a descer da pereira, mas a velhinha respondia: “ Não quero, não quero e não quero”.
Falou então a Morte do alto da pereira e fez com a velhinha um contrato: poupar-lhe a vida enquanto o mundo fosse mundo. A velhinha consentiu e a Morte desceu. Por isso enquanto o mundo for mundo a Miséria existirá sobre a Terra.
 Conto tradicional português recolhido por Ataíde Oliveira. Disponível em http://lendo_e_entretendo.blogs.sapo.pt/
 Visite MEMORIA media – e-Museu do Património Imaterial em http://www.memoriamedia.net/