terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Álamo Oliveira, Excerto de "Até hoje (memórias de cão)"

"[…]

Começou por sentir uma carícia no rosto. Aguentou-a de olhos fechados, um gozo longo e subterrâneo. Ainda a música lenta, suave, que a Emissora Oficial de Bissau irradiava num comprimento mal medido de onda. E a voz contida «João!» Finalmente abre os olhos. Fernando está ali a sorrir, a sorrir, a mão leve mantida no rosto. «Dormiste toda a tarde. O que é que vais fazer de noite?» / «Acredita que fiz boa viagem…» Fernando está agora curioso. «Sonhaste?» / «Foi lindo, Fernando!» / «Sonhaste comigo?» / «Oh, não!» Saltou da cama apoiado em Fernando e saíram. Começava a escurecer. Jantaram. Depois, foi o bar, a cerveja, a vertigem. E a carta da Isabel entregue ao seu sepulcro. O sonho acabara. Fatalmente. Está aí a noite, solene senhora das trevas, manto negro do mundo. E Fernando também nos seus cuidados múltiplos, no seu querer entregar-se. João não acredita ainda nessa ternura que o toca e o estremece. Parece amor de romance escrito. As palavras não poderão ser apagadas, assim as quis o autor, cumpra-se-lhe a vontade. Mas tem o desejo imenso de lhe dar qualquer coisa. Desfaz a carteira dos cigarros e no seu avesso desenha, traços rápidos de esferográfica. «Da minha ilha, para ti.» Fernando pega no papel, observa-o demoradamente, beija-o e guarda-o no bolso da camisa, do lado do coração. No papel, estão duas garças em pleno voo, belas como num desenho infantil.
            «Ainda não é novembro, João?...»
            […]"

Oliveira, Álamo (1988). Até Hoje (memórias de cão).

Angra do Heroísmo: Signo. pp. 73-74.
 

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