"[…]
Começou por sentir uma
carícia no rosto. Aguentou-a de olhos fechados, um gozo longo e subterrâneo.
Ainda a música lenta, suave, que a Emissora Oficial de Bissau irradiava num
comprimento mal medido de onda. E a voz contida «João!» Finalmente abre os
olhos. Fernando está ali a sorrir, a sorrir, a mão leve mantida no rosto.
«Dormiste toda a tarde. O que é que vais fazer de noite?» / «Acredita que fiz
boa viagem…» Fernando está agora curioso. «Sonhaste?» / «Foi lindo, Fernando!»
/ «Sonhaste comigo?» / «Oh, não!» Saltou da cama apoiado em Fernando e saíram.
Começava a escurecer. Jantaram. Depois, foi o bar, a cerveja, a vertigem. E a
carta da Isabel entregue ao seu sepulcro. O sonho acabara. Fatalmente. Está aí
a noite, solene senhora das trevas, manto negro do mundo. E Fernando também nos
seus cuidados múltiplos, no seu querer entregar-se. João não acredita ainda
nessa ternura que o toca e o estremece. Parece amor de romance escrito. As
palavras não poderão ser apagadas, assim as quis o autor, cumpra-se-lhe a
vontade. Mas tem o desejo imenso de lhe dar qualquer coisa. Desfaz a carteira
dos cigarros e no seu avesso desenha, traços rápidos de esferográfica. «Da minha
ilha, para ti.» Fernando pega no papel, observa-o demoradamente, beija-o e
guarda-o no bolso da camisa, do lado do coração. No papel, estão duas garças em
pleno voo, belas como num desenho infantil.
«Ainda não é novembro, João?...»
[…]"
Oliveira, Álamo (1988). Até
Hoje (memórias de cão).
Angra do Heroísmo:
Signo. pp. 73-74.
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