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Excerto de A Barca dos Homens
Nove horas da manhã e o dia já
quente. A praia fervilhava de gente, as barracas de lona coloriam de vermelho,
azul e amarelo a areia faiscante. A água deve estar gostosa, friinha até
acostumar. Godofredo, vamos à praia? gritou ela para o marido. Ele custou a
responder. Se você quiser. Sempre assim, fazia-se de rogado. Ela não gostava de
pensar no carácter do marido, se exasperava. Como custou a conhecê-lo. Algumas
pessoas a gente conhece logo, diz logo se têm medo, se são covardes, se têm
força, um por um. Outras, a vida inteira não se manifestam, para sempre
apagadas. Tinha para si algumas qualidades fundamentais ao homem: coragem, uma
delas, a brutalidade talvez, a força diante da morte. Ela pensava em termos de
morte, em termos definitivos. A vida não lhe dava nada daquilo. Não é
reflectindo que o homem se descobre, pensou ela altamente filosófica. Há muitas
coisas escondidas dentro do homem, que o pensamento jamais descobrirá. Os
homens necessitam de espelho para se verem. Ou de uma acção qualquer, de uma
luta qualquer. A vida lhe revelara um triste Godofredo. Vendo-o, ninguém diria,
hem, meu pai?
Lembrava-se
dos primeiros tempos, quando conhecera Godofredo. Ele gostava de dizer o
próprio nome. Não havia de ser Godofredo Cardoso de Barros que ia fazer aquilo.
Não com Godofredo Cardoso de Barros. No fundo, Maria acarinhava a vaidade de se
saber mais inteligente do que ele, mas gostava de vê-lo emitir opiniões
definitivas. Ele tinha força, seus braços eram firmes quando lhe apertavam a
cintura. E as mãos sem delicadeza lhe apalpando os seios? Amava-o,
emprestava-lhe qualidades excepcionais. Godofredo trabalhava num banco, ganhava
bem, começava a fazer alguns negócios, lia os seus livros, e sobretudo tinha
opiniões. Um homem com opiniões é gozado. Ela ria como se estivesse brincando.
Assim ela o acompanhava com uma seriedade fingida, feliz. Ele era o cabeça de
casal. Sobretudo tinha opiniões. Maria provocava-o para vê-lo falar, para comer
com os olhos os lábios grossos deitando palavras que possuíam existência real,
como pedaços de carne, por mais abstractas que fossem. Era mesmo gozado ter ao
lado um homem que tinha opiniões, que explicava as coisas. Godofredo. Deitava a
cabeça nos seus ombros, não prestava muita atenção ao que ele dizia, só o
barulho do peito, a voz que queria se fazer firme.
Não havia de ser Godofredo Cardoso de Barros,
repetia ela agora rindo interiormente, descobrira o ridículo de situações que
antes admirava. A mocidade nunca é ridícula, hem, meu pai? Godofredo ali
estava, mais velho, uma pessoa inteiramente diferente daquela que ela amara. De
calção de banho, as pernas peludas, o peito peludo, a cabeça grande e peluda.
No quarto ao lado.
Autran Dourado (1975). A
Barca dos Homens. Amadora: Livraria Bertrand. pp. 31-32.
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