Na nova escravidão, a raça tem pouco significado. No passado, as diferenças étnicas e raciais eram usadas para explicar e desculpar a escravatura. Essas diferenças permitiam aos escravocratas inventar razões que tornavam a escravatura aceitável, ou até uma boa coisa para os escravos. A diferença dos escravos tornava mais fácil usar a violência e a crueldade necessárias para o controlo total. Essa diferença podia ser definida quase de um modo qualquer – diferente religião, tribo, cor de pele, língua, costumes ou classe económica. Qualquer dessas diferenças podia ser e era usada para separar os escravos dos escravocratas. Manter essas diferenças exigia um tremendo investimento em algumas ideias muito irracionais – quanto mais louca a ideia justificativa mais veementemente se insistia nela. Os Pais Fundadores tiveram que recorrer a contorções morais, linguísticas e políticas para explicar por que razão a sua «terra dos livres» era só para pessoas brancas. Muitos deles sabiam que ao admitir a escravatura estavam a trair os seus mais caros ideais. Eram levados a isso porque nesse tempo a escravatura valia muito dinheiro para muita gente na América do Norte. Mas deram-se ao trabalho de urdir desculpas legais e políticas porque sentiam que tinham de justificar moralmente as suas decisões económicas.
Hoje, a moralidade do dinheiro supera todas as outras considerações. A maioria dos escravocratas não sente a necessidade de explicar ou defender o método de recrutamento ou de gestão do trabalho que escolheram. A escravatura é um negócio muito lucrativo, e um bom lucro é justificação bastante. Libertos das ideias que restringem o estatuto de escravo aos outros, os escravocratas modernos usam outros critérios para escolher escravos. Na realidade, eles gozam de uma grande vantagem: ser capaz de escravizar pessoas do seu próprio país ajuda a manter os custos baixos. Os escravos no Sul da América no século XIX eram muito caros, em parte porque originalmente tinham de ser transportados de África por milhares de quilómetros. Quando os escravos podem ser obtidos na cidade ou na região ao lado, caem os custos de transporte. A questão não é: «Serão eles da cor certa para serem escravos?», mas «Serão eles suficientemente vulneráveis para serem escravizados?». Os critérios de escravização não se referem à cor, tribo ou religião; eles centram-se na fraqueza, na credulidade e na privação.
É verdade que em alguns países existem diferenças étnicas ou religiosas entre os escravos e os escravocratas. NO Paquistão, por exemplo, muitos tijoleiros escravizados são cristão, enquanto os escravocratas são muçulmanos. Na índia, escravo e escravocrata podem ser de castas diferentes. Na Tailândia podem ser de diferentes regiões do país e são muito mais provavelmente mulheres. Mas no Paquistão há cristãos que não são escravos, na Índia membros da mesma casta que são livres. A sua casta ou religião reflecte simplesmente a sua vulnerabilidade à escravização; não é a causa dela. Só num país, a Mauritânia, o racismo da antiga escravatura persiste – ali os escravos negros pertencem a escravocratas árabes, e a raça é uma divisão-chave. Na verdade, algumas culturas estão mais divididas pelas linhas raciais do que outras. A cultura japonesa distingue fortemente os japoneses como diferentes de todos os outros, e por isso as prostitutas escravizadas no Japão são provavelmente mulheres tailandesas, filipinas ou europeias – embora possam também ser japonesas. Mesmo ali, a diferença-chave não é racial, mas económica: as mulheres japonesas não são de modo nenhum tão vulneráveis e desesperadas como as tailandesas ou filipinas. E as tailandesas estão disponíveis para serem transportadas para o Japão, porque os tailandeses escravizam tailandeses. O mesmo padrão verifica-se nos Estados ricos em petróleo da Arábia Saudita e do Kuwait, onde os árabes muçulmanos escravizam promiscuamente hindus do Sri Lanka, cristãos das Filipinas e muçulmanos da Nigéria. O denominador comum é a pobreza, não a cor. Por trás de cada afirmação de diferença étnica, está a realidade da disparidade económica. Se todos os canhotos do mundo se tornassem amanhã necessitados, em breve haveria escravocratas a aproveitar-se deles. Os modernos escravocratas são predadores intensamente conhecedores da fraqueza; eles estão a adaptar rapidamente uma prática antiga à nova economia global.
Kevin Bales (2001). Gente Descartável: A Nova Escravatura na Economia Global.
(António Pescada, Trad.). Lisboa: Caminho. pp. 20-22.
Web page da Anti-Slavery International: http://www.antislavery.org/ english/
Iqbal Masih (slave; anti-slavery activist; born 1982; killed 1995) – his story
Stop Childhood Labour – tribute to Iqbal Masih
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