Gao Xingjian
Instantâneos
[excerto]
[…]
«Um pequeno chinês…», o velho negro canta em inglês sem lhe lançar um olhar. A velha negra acaricia o teclado, quase deitada sobre o piano, balança o corpo ao compasso, absorvida pela música, como se estivesse bêbeda ou apaixonada, também não olha. Ele está entretido a beber a sua cerveja. Sob a luz azul fluorescente do bar, ninguém olha para ninguém. A assistência, embalada pela música, parece um grupo de marionetas a mexer a cabeça.
O cavalo empinou as patas da frente. Patas cobertas de pêlos. «Vagabundeia pelo mundo…» O canto do velho homem negro recomeça.
A velha mulher dá o acorde, o sol ressoa nos cascos dos cavalos. «Vagabundeia pelo mundo… Vagabundeia pelo mundo…» O velho homem negro é acompanhado pela bateria e a assistência move a cabeça ao ritmo.
A corda desliza de mão em mão; em baixo, os pés calçados com sapatos de couro estão solidamente ancorados na relva verde.
A espuma voa no ar, as vagas batem no molhe. Em baixo, a maré sobe, a praia já desapareceu completamente. O sol continua brilhante, mas o céu e o mar parecem de um azul ainda mais forte.
A extremidade da corda acaba por aparecer. Um enorme peixe morto preso a um anzol vermelho é lançado sobre a erva verde. Tem a boca muito aberta como se ainda respirasse; de facto, está morto. O seu olho muito redondo já não tem brilho, mas ainda tem uma expressão de pavor.
A água do mar ultrapassa o molhe e espraia-se no dique molhado. O céu torna-se azul escuro e a luz do sol extraordinariamente transparente.
Uma grande barata de asas luzidias agita as antenas. Trepa pelo tapete felpudo de uma brancura leitosa. Avança sobre os fios entrançados. No círculo de luz do lustre suspenso sobre o tapete recorta-se a parte de trás de um cavalo esculpido em madeira de palissandro: as duas patas posteriores e a garupa lisas e brilhantes. Os cascos estão cobertos por uma lamela de cobre fixada por pequenos pregos delicadamente trabalhados.
«Vagabundeia… pelo mundo! Vagabundeia… pelo mundo!» O teclado recomeça a cantar sob as mãos negras cobertas de rugas. Abana incessantemente a cabeça ao ritmo da música. Em frente dele, no balcão, estão alinhadas três garrafas de cerveja vazias. Na mão tem um copo meio cheio. Uma mulher branca instala-se no banco ao lado do seu, coxas apertadas por uma saia de cabedal, tão lisas e brilhantes como a garupa de um cavalo.
A água do mar, como uma peça de cetim negro, espraia-se no dique; um peixe morto jaz na água que se estende. Nem um som. A maré e o vento quedaram-se subitamente. Parece que o tempo parou. Só a água do mar se espraia, negro cetim estendido. Talvez não se mova. É apenas uma impressão, uma sensação, uma imagem que se pressente.
[…]
Gao, Xingjian (2001). Instantâneos. In Uma Cana de Pesca para o Meu Avô (3ª ed.).
(Carlos Aboim de Brito, Trad.). Lisboa: Publicações Dom Quixote. pp. 100-101.
Páginas Paralelas:
Gao Xingjian’s Biography and Nobel Letcure
«Prix Nobel de littérature 2000, poète, dramaturge, peintre, Gao Xingjian a choisi Marseille pour s'y installer durant une année. "L'Année Gao à Marseille" a été pour l'artiste un défi fou et osé : Art plastiques, Théâtre, Opéra, Colloque international, Cinéma, autant d'œuvres inédites d'une éthique métaphysique rare et présentées aux Marseillais comme une démarche volontaire d'Art Total, avec comme Commissaire général Salvatore Lombardo. La réalisation de Alain Melka nous révèle, tout en poésie et pudeur, une œuvre majestueuse et unique, mais surtout un homme, Gao Xingjian, épris de liberté artistique et humaine. "Un oiseau dans la ville", les ailes du langage absolu.»
Alain Melka (2003). "L'Année Gao à Marseille". Digital Media Production:
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