terça-feira, 25 de setembro de 2012

Viagem à roda do meu quarto
Xavier de Maistre

Capítulo I
Como é glorioso iniciar uma nova carreira, e aparecer subitamente no mundo culto, com um livro de descobertas na mão, tal um cometa inesperado que fulge no espaço!
     Não, não mais guardarei o meu livro in petto; ei-lo, senhores, leiam-no. Iniciei e terminei uma viagem de quarenta e dois dias à roda do meu quarto. As observações interessantes que recolhi e o prazer contínuo que experimentei ao longo do caminho fizeram com que desejasse torná-la pública; a certeza de ser útil conduziu-me a esta decisão. […]

Capítulo  IV
O meu quarto situa-se a quarenta e cinco graus de latitude, segundo as medições do padre Beccaria; está orientado na direcção levante-poente; forma um quadrilongo de trinta e seis passos em volta, bem rentes à parede. A minha viagem, todavia, comportará mais, pois irei atravessá-lo muitas vezes dum lado para o outro, ou então diagonalmente, sem seguir regra ou método. – Farei mesmo ziguezagues e todas as linhas possíveis em geometria, se necessidade houver. Não gosto das pessoas que são muito donas dos seus passos e das suas ideias, e que dizem: “Hoje vou fazer três visitas, escrever quatro cartas, acabar esta tarefa que comecei.” – A minha alma está largamente aberta a toda a espécie de ideias, de gostos e sentimentos; recebe muito avidamente tudo quanto se lhe apresente!... – E porque recusaria ela os prazeres espalhados ao longo do difícil caminho da vida? São tão raros, tão dispersos, que era preciso ser-se louco para não parar, desviar até o caminho para recolher todos os que estão ao nosso alcance. Em minha opinião, não há nenhum mais atraente do que andar no encalço das próprias ideias, tal como o caçador persegue a caça, sem procurar manter um dado caminho. Além disso, quando viajo no meu quarto, raramente percorro uma linha recta: vou da mesa até junto dum quadro que se encontra colocado num canto; daí parto obliquamente até à porta; mas embora ao partir a minha intenção seja a de me dirigir para ali, caso encontre a poltrona no caminho não faço cerimónia e instalo-me nela imediatamente. – Uma poltrona é um excelente móvel; sobretudo da maior utilidade para qualquer homem meditativo. […]

Capítulo XXVII
As estampas e os quadros de que acabo de falar somem-se e desaparecem ao primeiro olhar que lançamos sobre o quadro seguinte: as obras imortais de Rafael, de Corrège e de toda a escola italiana não suportariam o paralelo. Por isso o guardo sempre para o fim, como peça de reserva, quando ofereço a alguns curiosos o prazer de viajarem comigo; e posso garantir que, depois de mostrar este quadro sublime aos conhecedores e aos ignorantes, à sociedade, aos artesãos, às mulheres e às crianças, e até aos animais, vi sempre qualquer um dos espectadores manifestar, cada qual à sua maneira, sinais de prazer e espanto: tão admiravelmente ali está representada a natureza!
     Ah! que quadro vos poderíamos apresentar, senhores, que espectáculo poderíamos oferecer aos vossos olhos, senhoras, mais seguro de merecer o vosso sufrágio do que a representação fiel de vós próprios? O quadro de que vos falo consiste num espelho, e até agora ninguém ousou criticá-lo; para todos quantos o miram, é um quadro perfeito a que nada há a opor.
     […]
     Este privilégio tinha-me feito desejar a invenção de um espelho moral, onde todos os homens pudessem ver-se com os seus vícios e virtudes. Sonhava mesmo propor a qualquer academia um prémio para tal descoberta, quando reflexões mais maduras me demonstraram a sua inutilidade.
     Ai! é tão raro que a fealdade se reconheça e quebre o espelho! Em vão os espelhos se multiplicam à nossa volta e reflectem com geométrica exactidão a luz e a verdade; no momento em que os raios penetram o nosso olho e nos mostram tal como somos, o amor-próprio introduz o seu prisma enganador entre nós e a nossa imagem, e apresenta-nos uma divindade.
     […]
Xavier de Maistre (2002). Viagem à Roda do meu Quarto seguido de O Leproso da Cidade de Aosta. (Célia Henriques Trad.). Lisboa: & etc. pp. 19/25-26/71-72. [Viagem à Roda do meu Quarto foi publicado pela primeira vez em 1795]

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