Ela não sabia que os padeiros estavam em greve. Só soube depois. Ela tinha ido passar a noite com a prima, estavam sozinhas na barraca de madeira, estavam a dormir, quando foram despertadas pelas chamas. Correu para a porta, tentou abri-la, mas estava fechada. Atrás do rugido do fogo, ouviam-se as vozes dos homens na rua. Com queimaduras em todo o corpo, nas mãos, no rosto, ficou em coma durante três meses e, só depois, soube que os padeiros estavam em greve. Foi por isso que os homens vieram queimar a barraca do tio enquanto ele estava a trabalhar na padaria. Foi por isso que trancaram a porta e não a deixaram sair.
Nessa noite, tinha dezassete anos e, no momento em que me conta a sua história, tem vinte e um. É a mais velha, ainda está na associação para continuar a ter oportunidade de estudar em Joanesburgo. Falamos em inglês, mas a sua língua, aquela que a mãe lhe ensinou, é xhosa. Esse é o idioma onde algumas palavras se pronunciam com estalidos da língua. Tenta ensinar a dizer "lagarto" em xhosa, dois estalidos. É muito difícil. Todos nos rimos das tentativas. Ao meu colo está Nkosi, o mais novo, dois anos e oito meses. Nasceu no Zimbabwe e olha para ela com a mesma admiração. Tem o rosto queimado, sem nariz, o lábio de cima desfeito, a pele com uma mistura de tons claros e escuros, cicatrizes grossas negras e manchas claras, dois olhos grandes a verem tudo. Nkosi caiu sobre uma fogueira quando tinha vinte meses. É seropositivo. O seu nome significa: "Obrigado, Deus".
Children of Fire, crianças de fogo. Esta associação não governamental foi fundada na África do Sul por Bronwen Jones quando tomou contacto com Dorah Mokoena, uma menina de três anos, que tinha sofrido queimaduras muito graves aos seis meses de idade, e a quem se preparavam para remover os olhos, pois a sua preservação era demasiado cara e todos acreditavam que morreria em breve. Num país com quilómetros quadrados de barracas iluminadas por candeeiros a petróleo e aquecidas por fogo, que dão origem a mais cinquenta mil incêndios por ano, as vítimas infantis nunca pararam de chegar. Enquanto conversamos, Dorah está por perto. Tem dezassete anos, a boca foi reconstruída com pele recolhida das costas, tem um nariz de borracha, consegue ver claridade e algumas cores, não tem mãos. E sobreviveu.
Bronwen faz um sinal e todas as crianças dirigem-se a mim com um presente. O meu aniversário é na semana seguinte e as crianças fizeram-me um cartão assinado por todos, Happy Birthday from Children of Fire. Rodeiam-me e mostram-me os desenhos que fizeram no cartão, uma página cheia de flores, estrelas e corações. Trocamos beijos, abraços, aperto mãos pequeninas, algumas com falta de dedos, outras sem qualquer dedo. As crianças cantam-me os parabéns. Tiramos uma fotografia juntos.
Antes de chegar, quando ainda só tinha visto as fotografias das crianças na página da associação na internet, pensava que me ia fazer impressão. Nunca tinha estado na presença de tantas pessoas queimadas. Mal atravessei o portão, percebi que não ia ser assim. Estavam todos no pátio e correram na minha direcção, queriam ver-me e queriam brincar. Para lá dos rostos desfigurados e da maior ou menor agilidade, eram crianças. Ao mesmo tempo, percebi a razão das fotografias na página da internet, do documentário e de todas as formas que a associação utiliza para mostrar os seus rostos. Aquelas crianças precisam que o mundo as veja, que o mundo saiba que existem. Mais ainda, o mundo precisa de ver aquelas crianças. É bom para as crianças saberem que o mundo as considera para lá da pele, e é bom para o mundo que seja capaz de considerar os outros para lá da pele.
Feleng tem dez anos e é um rapaz muito engraçado. Quando Bronwen fala de cirurgias, interrompe para descrever aos outros a neve que viu na Suíça e, depois, conta que os médicos lhe tiraram duas costelas e lhas meteram no crânio. Os outro fazem sons e gestos de incómodo e riem-se. Bronwen explica que, assim, o enxerto ósseo crescerá ao mesmo tempo que o crânio. Nunca tinha pensado nisso. Há tanto em que nunca pensei.
Ao passear pela escola, caminho sempre de mão dada com o pequeno Nkosi. Quando chega a hora de ir embora, ele não quer largar-me a mão. Ao despedir-me de todos, ele começa a chorar. Na rua, dou passos, afasto-me e ouço-o a chorar. Já dentro do carro, ainda o ouço a chorar.
José Luís Peixoto (2011). Crianças de Fogo. Visão. Disponível em: http://www.joseluispeixoto.net/2011/09/ (acedido a 11 de Novembro de 2011).
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