segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Franz Kafka, Excerto de "Carta ao Pai"


Meu querido pai,
                perguntaste-me há pouco tempo por que razão digo que tenho medo de ti. Como de costume, não soube o que responder, em parte precisamente devido ao medo que sinto de ti, mas também porque para fundamentar esse medo seria preciso entrar em muitos pormenores, que nem de longe conseguiria ter presentes ao falar. E se tento por este meio responder-te por escrito, o resultado continuará a ser muito incompleto, porque também ao escrever o medo e as suas consequências perturbam a comunicação contigo, e a escala da matéria se situa muito para além da minha memória e do meu entendimento.
                Para ti, o problema sempre se apresentou como coisa muito fácil, pelo menos nos momentos em que, comigo ou com outros, indiscriminadamente, tocaste neste assunto. Para ti, as coisas colocavam-se mais ou menos assim: toda a vida trabalhaste muito, sacrificaste tudo pelos teus filhos, especialmente por mim, e por isso eu «vivi à grande», tive toda a liberdade de estudar o que quis, nunca tive preocupações materiais nem de qualquer outra ordem. Tu, por teu lado, não pedias em troca qualquer espécie de gratidão, já conheces «a gratidão dos filhos», pedias apenas alguma compreensão, um sinal de simpatia; em vez disso, o que sempre fiz foi esconder-me de ti, enfiar-me no quarto rodeado de livros e de amigos loucos, de ideias extravagantes. Para ti, nunca falei abertamente contigo, nunca fui ter contigo ao templo, nunca te visitei em Franzensbad, nem nunca tive o sentido da família, nunca me preocupei com a loja ou com os teus assuntos, entreguei-te a fábrica para depois te abandonar, apoiando a minha irmã Ottla nos seus caprichos, não mexo um dedo para te ajudar (nem sequer te arranjo um bilhete para o teatro), mas faço tudo pelos meus amigos. Em resumo, o juízo que de mim fazes não te levará com certeza a acusar-me de qualquer coisa de menos decente ou de mau (com excepção, talvez, dos meus últimos planos de casamento), mas de frieza, estranheza, ingratidão. E lanças-me isso à cara como se a culpa fosse minha, como se eu pudesse mudar tudo automaticamente, enquanto tu não tens sombra de culpa em tudo isto, a não ser eventualmente a de teres sido bom de mais para comigo.
                Só reconheço validade a este teu modo de apresentar as coisas na medida em que também eu acredito que não tens qualquer culpa deste nosso estranhamento. Mas também eu sou completamente inocente. Se te pudesse levar a aceitar isto, seria possível, não digo uma nova luz – para isso somos os dois demasiado velhos –, mas uma espécie de pacificação, não o fim das hostilidades, mas uma atenuação das tuas constantes acusações.
(…)
Franz Kafka (2008). Carta ao Pai.  (João Barrento, Trad.). Vila Nova de Famalicão:
Quasi Edições. pp. 7-9. Publicado pela primeira vez em 1919.

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