quinta-feira, 19 de maio de 2011

José Saramago, "A minha subida ao Everest"


Não haverá no deserto uma súbita ascensão que de longe ainda precipite a vertigem ímpar que é o lastro denso que nos justifica? Por outras palavras, e mais simples: não seremos todos nós transformadores do mundo? Um certo e breve minuto da existência não será a nossa prova, em vez de todos os sessenta ou setenta anos que nos couberam em quinhão?
Mal é se vamos encontrar esse minuto num passado longe, ou no momento não temos olhos para outras ascensões mais próximas. Mas talvez haja aí uma escolha deliberada, consoante o lugar onde falamos do nosso deserto pessoal ou os ouvidos que nos escutam. Hoje, por exemplo, seja qual for a razão, estou a ver, à distância de trinta e muitos anos, uma árvore gigantesca, toda projectada em altura, que parecia, na lezíria circular e lisa, a haste de um grande relógio de sol. Era um freixo de couraça rugosa, toda fendida na base, e que desenvolvia ao longo do tronco uma sucessão de tufos ramosos, como andares que prometiam uma escada fácil. Mas eram, pelo menos, trinta metros de altura…
Vejo um garoto descalço rodear a árvore pela centésima vez. Ouço o bater do seu coração e sinto-lhe as palmas húmidas das mãos e um vago cheiro de seiva quente que sobe das ervas. O rapazinho levanta a cabeça e vê lá no alto o topo da árvore que se agita lentamente como se estivesse caiando o céu azul.
Os dedos do pé descalço firmam-se na casca do freixo, enquanto o outro pé balouça o impulso que fará chegar a mão ansiosa ao primeiro ramo. Todo o corpo se cinge contra o tronco áspero, e a árvore decerto ouve as pancadas surdas do coração que se lhe entrega. Até ao nível das outras árvores antes conquistadas, a agilidade e a segurança alimentam-se do hábito. Mas, a partir daí, o mundo alarga-se subitamente, e todas as coisas, até então familiares, se vão tornando estranhas, pequenas, é como um abandono de tudo – e tudo abandona o rapaz que sobe.
Dez metros, quinze metros. O horizonte roda devagar, e cambaleia quando o tronco, cada vez mais delgado, oscila ao vento. E há uma vertigem que ameaça e não se decide nunca. Os pés arranhados são como garras que se prendem nos ramos e não os querem largar, enquanto as mãos buscam frementes a altura, e o corpo se contorce contra o corte vertical da árvore. O suor escorre, e de repente um soluço seco irrompe à altura dos ninhos e dos cantos das aves. É o soluço do medo de não ter coragem. Vinte metros. A terra está definitivamente longe. As casas rasteiras são insignificantes, e as pessoas é como se tivessem desaparecido, e de todas apenas restasse o rapaz que sobe – precisamente porque sobe.
Os braços já podem cingir o tronco, as mãos já se unem do outro lado. O topo está perto, oscilando como um pêndulo invertido. Todo o céu azul se adensa por cima da última folha. O silêncio cobre a respiração arquejante e o sussurro do vento nos ramos. É este o grande dia da vitória.
Não me lembro se o rapaz chegou ao cimo da árvore. Uma névoa persistente cobre essa memória. Mas talvez seja melhor assim: não ter alcançado o pináculo então, é uma boa razão para continuar subindo… Como um dever que nasce de dentro e porque o sol ainda vai alto.

Fragmento de “A minha subida ao Everest”,
in José Saramago (1973), A bagagem do viajante.
Lisboa: Editorial Futura, pp. 14-16.

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