sexta-feira, 27 de julho de 2012

Newsletter

Acompanhe a nossa atividade a partir da newsletter, disponível neste endereço: https://dl.dropbox.com/u/74257527/1p-D_Newsletter_02_2012_definitiva.pdf

Neste tempo de férias, deixamos-lhe um enorme manancial de leituras à distância de um clique!
A busca pelo sentido da vida é outra viagem, aquela que todos nós empreendemos afinal…
Porque sozinhos não vamos a lado nenhum, embarque nesta proposta invulgar do realizador Miguel Gonçalves Mendes, descubra o que é crowdfunding e deixe-se levar pelo lado mais criativo da crise.
Quanto à “sua” viagem… parta já! A vida não espera.

Miguel Gonçalves Mendes convida espectadores a descobrir «O Sentido da Vida»
O novo filme do realizador de «José & Pilar» segue um protagonista na busca pelo sentido da vida. Qualquer um pode ser co-produtor do filme: com dois euros compra um frame, com 20 uma participação na fita, com 5 mil tem direito a parte do lucro.
[…]
Sapo Notícias

Leia mais e veja o que o realizador tem para lhe dizer.

Aceda também ao site oficial de “O Sentido da Vida”, onde poderá visualizar o teaser do filme e ver como pode participar nesta “aventura”.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

EMIGRANTES

Shaun Tan







Shaun Tan (2011). Emigrantes. Matosinhos: Kalandraka. [Publicado pela primeira vez em 2006 - título original: The Arrival]
Excertos dos Capítulos I e III
Páginas Paralelas:

Visite a Página Web de Shaun Tan e descubra outros mundos.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

As Cidades Invisíveis
Italo Calvino

Diomira, Doroteia, Zaira, Anastácia, Tamara, Maurília, Fedora, Olívia, Aglaura, Ersília, Bauci, Melânia, Adelma, Trude, Raissa, Teodora, Berenice… não… não são nomes de mulheres… são as cidades invisíveis que Marco Polo descreve a Kublai Kan… as visões que Italo Calvino nos passa de ambientes deste e do outro mundo.
“Chegando a qualquer nova cidade o viajante reencontra o seu passado que já não sabia que tinha: a estranheza do que já não somos ou já não possuímos espera-nos ao caminho nos lugares estranhos e não possuídos.”
(p. 30)

As cidades e a memória.    2.
O homem que cavalga longamente por terrenos bravios sente o desejo de uma cidade. Finalmente chega a Isidora, cidade onde os prédios têm escadas de caracol encrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade. Assim Isidora é a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça há um paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles. Os desejos já são recordações. (p. 12)
As cidades e os sinais.    2.
Da cidade de Zirma os viajantes tornam com recordações bem distintas: um negro cego a gritar no meio da multidão, um louco a debruçar-se do terraço de um arranha-céus, uma rapariga a passear com um puma pela trela. Na realidade muitos dos cegos que batem as bengalas nas calçadas de Zirma são negros, em cada arranha-céus há sempre alguém que enlouquece, todos os loucos passam horas nos terraços, não há puma que não seja criado por um capricho de rapariga. A cidade é redundante: repete-se para que haja qualquer coisa que se fixe na mente.
Eu também estou de regresso de Zirma: A minha recordação compreende dirigíveis que voam em todos os sentidos á altura das janelas, ruas de lojas onde desenham tatuagens na pele aos marinheiros, comboios subterrâneos apinhados de mulheres obesas cheias de calor. Em contrapartida, os companheiros que estavam comigo na viagem juram que viram um único dirigível pairar por entre os pináculos da cidade, um único tatuador colocar na banca agulhas e tintas e desenhos perfurados, uma única mulher-canhão a abanar-se na plataforma de uma carruagem. A memória é redundante: repete os sinais para que a cidade comece a existir. (p. 23)
As cidades e o desejo.    5.
Dali, ao cabo de seis dias e sete noites o homem chega a Zobaida, cidade branca, bem exposta à lua, com ruas que se viram sobre si próprias como num cotovelo. Conta-se isto da sua fundação: homens de nações diferentes tiveram um sonho igual, viram uma mulher correr de noite por uma cidade desconhecida, por trás, de cabelos compridos, e estava nua. Sonharam que a seguiam. Ora um ora outro, todos a perderam. Depois do sonho andaram à procura dessa cidade. Não a descobriram mas encontraram-se uns aos outros; decidiram construir uma cidade como a do sonho. Na disposição das ruas cada um refez o percurso da sua perseguição; no ponto que tinha perdido o rasto da fugitiva ordenou diferentemente do sonho os espaços e as paredes de modo que ela já não lhe pudesse fugir.
Esta passou a ser a cidade de Zobaida em que se estabeleceram à espera de que uma noite se repetisse aquela cena. Nenhum deles, nem em sonhos nem acordado, voltou a ver essa mulher. As ruas da cidade eram as mesmas em que eles iam para o trabalho todos os dias, já sem nenhuma relação com a perseguição sonhada. Que de resto já tinha sido esquecida hà muito tempo.
Chegaram mais homens de outros países, que haviam tido um sonho como o deles, e na cidade de Zobaida reconheciam algo das ruas do sonho, e mudavam de lugar pórticos e escadas para que se parecessem mais com o caminho da mulher perseguida e para que no ponto em que desaparecera já não tivesse saída.
Os primeiros chegados não compreendiam o que atraía esta gente a Zobaida, a esta feia cidade, a esta ratoeira. (pp. 47-48)
As cidades e as trocas.    3.
Entrado no território que tem Eutrópia por capital, o viajante vê não uma cidade mas muitas, de igual grandeza e não diferentes umas das outras, espalhadas por um vasto e ondulado planalto. Eutrópia é não uma mas sim todas estas cidades juntas; uma só é habitada, as outras estão vazias; e isto faz-se por rotação. Vou contar como. No dia em que os habitantes de Eutrópias se sentem atacados por cansaço, e já ninguém suporta o seu ofício, os parentes, a casa e a rua, as dívidas, a gente que deve cumprimentar ou que o cumprimenta, então todos estes cidadãos decidem transferir-se para a cidade vizinha que está ali à espera, vazia e como nova, onde cada um tomará outro ofício, outra mulher, verá outra paisagem ao abrir a janela, passará as noites com outros passatempos amizades maledicências. Assim a sua vida renova-se de mudança em mudança, entre cidades que devido às exposição ou ao declive ou aos cursos de água ou aos ventos se apresenta cada uma com qualquer diferença das outras. Sendo a sua sociedade ordenada sem grandes diferenças de riqueza ou de autoridade, as passagens de uma função para outra dão-se quase sem abalos; a variedade é assegurada pelas múltiplas incumbências, de tal modo que no espaço de uma vida raramente se regressa a um ofício que já tenah sido o seu.
Assim a cidade repete a sua vida sempre igual deslocando-se para baixo e para cima sobre o seu tabuleiro de xadrez vazio. Os habitantes voltam a representar as mesmas cenas com actores mudados; tornam a dizer as mesmas frases com entoações diferentes combinadas: abrem boiças alternadas em iguais bocejos. Sozinha entre todas as cidades do império, Eutrópia permanece idêntica a si própria. Mercúrio, deus dos volúveis, ao qual é consagrada a cidade, fez este ambíguo milagre. (pp. 66-67)
As cidades e os olhos.    2.
É o humor de quem a olha que dá à cidade de Zemrude a sua forma. Se passarmos por ela a assobiar de nariz no ar atrás do assobio, conhecê-la-emos de baixo para cima: sacadas, tendas a ondular, repuxos. Se caminharmos através dela de queixo contra o peito, com as unhas espetadas nas palmas das mãos, os nossos olhares prender-se-ão ao chão, aos regos de água, aos esgotos, à tripas de peixe, ao papel velho. Não se pode dizer que um aspecto da cidade seja mais verdadeiro do que o outro, mas de Zemrude de cima ouve-se falar sobretudo a quem se lembra dela afundando-se na Zemrude de baixo, percorrendo todos os dias os mesmos caminhos e reencontrando de manhã o mau humor da véspera incrustado nas paredes. Para todos mais tarde ou mais cedo chega o dia em que baixaremos os olhos ao longo dos canos dos algerozes e já não conseguiremos afastá-los da calçada. Não está excluído o caso inverso, mas +e mais raro: por isso continuamos a andar pelas ruas de Zemrude com os olhos que agora já escavam por baixo das caves, dos alicerces, dos poços. (p. 68)
As cidades subtis.    5.
Se quiserem acreditar, muito bem. Agora vou contar como é Octávia, cidade teia de aranha. Há um precipício no meio de duas montanhas escarpadas: a cidade está situada sobre o vácuo, ligada aos dois cumes por teleféricos e correntes e passarelas. Caminha-se sobre as travessas de madeira, com cuidado para não meter os pés nos intervalos, ou agarrados à malhas de cânhamo. Por baixo não há nada por centenas e centenas de metros; corre uma ou outra nuvem; entrevê-se mais abaixo o fundo do precipício.
Esta é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e de apoio. Tudo o resto, em vez de se elevar por cima, está pendurado por baixo: escadas de corda, camas de rede, tendas suspensas, cabides,  terraços com barcas, odres de água, bicos de gás, espetos, cestos pendurados por cordéis, monta-cargas, duches, trapézios e aros para os jogos, teleféricos, candelabros, vasos com plantas de folhagens pendulares.
Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Octávia é menos incerta que noutras cidades. Sabem que mais do que um certo ponto a rede não aguenta. (p. 77)

[Marco Polo em conversa com Kublai Kan, no final da obra] O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar. (p. 166 – último parágrafo)

Italo Calvino (2006). As Cidades Invisíveis (6ª Ed.). (José Colaço Barreiros, Trad.). Lisboa: Teorema.
Páginas Paralelas:

Now travel to Malbork or just Outside the town of Malbork and take a look at a wide array of information on Italo Calvino (enough to keep you busy the whole summer).

terça-feira, 24 de julho de 2012

Três Mochileiros em Huahine
Gonçalo Cadilhe
(…)
Cheguei num cargueiro à ilha de Huahine. Saímos ao fim da manhã do porto de Papeete. Não tinha uma hora precisa de saída, era chegar cedo e sentar-se nas docas à espera. Foi aí que conheci o Peter, o americano. Viajava também para Huahine, onde chegámos já noite avançada. Tomo, o japonês, conhecemo-lo mais tarde, já instalados na pensão para mochileiros da Guynette. Ficámos amigos: alugámos um carro juntos, cozinhámos a quatro mãos e partilhámos o mesmo dormitório. Reparo agora com um sorriso: cada um de nós representava uma forma particular de enfrentar o mundo. Se uma qualquer enciclopédia apresentasse uma tipologia do viajante, cada um de nós ia parar a uma entrada diferente.
Peter tinha trabalhado largos anos num projecto de uma obra pública na Califórnia do Sul. Era engenheiro civil e tinha ganhado bom dinheiro com esse contrato. Quando terminou, não procurou emprego de imediato. Decidiu viajar por um ano à volta do mundo, escolhendo alguns destinos que lhe interessavam particularmente. Já estava na recta final da sua viagem, ali no meio do Pacífico. Tinha dado a sua volta ao mundo seguindo para leste e o próximo voo que iria apanhar seria já directo a Los Angeles, à vidinha de todos os dias. Havia uma sofreguidão no seu olhar que deve ser a do condenado à morte quando se atira à sua última refeição. Peter andava inquieto, nervoso, inconformado.
Tomo era o oposto do Peter: seráfico, imperturbável, introspectivo e sem voo de regresso marcado. Tal como o Peter, caminhava para leste: só que leste, para o Tomo, era a direcção contrária à da sua casa. Enquanto Peter acumulara um bolo monetário e ao longo de um ano gastara-o, estando já nas migalhas, o Tomo viajava com migalhas. Trazia um cartaz consigo e um banco. O cartaz dizia: «Massagens shiatsu, dez dólares – vinte minutos.» O banco era onde os clientes se sentavam. Tomo estacionava nas praças centrais das aldeias do mundo e esperava pelos clientes. Quando tinha migalhas suficientes, Tomo prosseguia mais uns quilómetros. Sem pressas.
Eu estava no meio destes dois modos de viajar. Tinha bilhete de regresso, mas cada regresso era também uma nova partida. Viajava não pela viagem em si, como eles, mas pelo projecto de trabalho que ela proporcionava: na altura, uma reportagem para uma revista; anos depois, a biografia de um navegador para um livro; actualmente, um documentário para a RTP2. O Peter tinha o horizonte fechado, o Tomo tinha-o aberto. Eu tinha de abrir horizontes com cada novo projecto de viagem, cada nova reportagem, cada novo livro ou documentário. O Peter era o destino, o Tomo era a viagem. Eu era a viagem com destino.
Tantos anos depois, quem sabe por onde andará cada um deles? Terá Peter partido para uma nova viagem? Terá Tomo encontrado uma chegada? Eu continuo a dar significado a cada partida com a chegada, a dar uma razão a cada viagem com o seu destino, a financiar cada errância geográfica com uma severa rotina profissional. Três entradas possíveis numa qualquer enciclopédia com a tipologia do viajante.
Gonçalo Cadilhe (2011). Três Mochileiros em Huahine. Encontros Marcados. Lisboa: Clube do Autor. pp. 37-38.
Páginas Paralelas:

Vá ao Site Oficial de Gonçalo Cadilhe e faça boas viagens na sua companhia.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Desejamos aos nossos leitores umas boas férias e dedicamos esta última semana às viagens.

“Viajar serve para encontrar o que não se procura.”
(Gonçalo Cadilhe)


Até Setembro!


Viagem a Portugal
de

José Saramago
[excerto]

DE NORDESTE A NOROESTE, DURO E DOURADO

O sermão aos peixes

De memória de guarda da fronteira, nunca tal se viu. Este é o primeiro viajante que no meio do caminho pára o automóvel, tem o motor já em Portugal, mas não o depósito da gasolina, que ainda está em Espanha, e ele próprio assoma ao parapeito naquele exacto centímetro por onde passa a invisível linha da fronteira. Então, sobre as águas escuras e profundas, entre as altas escarpas que vão dobrando os ecos, ouve-se a voz do viajante, pregando aos peixes do rio:
«Vinde cá, peixes, vós da margem direita que estais no rio Douro, e vós da margem esquerda que estais no rio Duero, vinde cá todos e dizei-me que língua é a que falais quando aí em baixo cruzais as aquáticas alfândegas, e se também lá tendes passaportes e carimbos para entrar e sair. Aqui estou eu, olhando para vós do alto desta barragem, e vós para mim, peixes que viveis nessas confundidas águas, que tão depressa estais duma banda como da outra, em grande irmandade de peixes que uns aos outros só se comem por necessidade de fome e não por enfados de pátria. Dais-me vós, peixes, uma clara lição, oxalá não a vá eu esquecer ao segundo passo desta minha viagem a Portugal, convém a saber: que de terra em terra deverei dar muita atenção ao que for igual e ao que for diferente, embora ressalvando, como humano é, e entre vós igualmente se pratica, as preferências e as simpatias deste viajante, que não está ligado a obrigações de amor universal, nem isso lhe pediu. De vós, enfim, me despeço, peixes, até um dia, ide à vossa vida enquanto por aí não vêm os pescadores, nadai felizes, e desejai-me boa viagem, adeus, adeus.»

José Saramago [1981]. Viagem a Portugal. Lisboa: Editorial Caminho. p. 7.
Páginas Paralelas:

Nestas férias, voltemos à Fundação José Saramago a ver o que lá se passa.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Graffiti “em baixo relevo”

[se nos é permitida a designação, e apenas para que se perceba a técnica utilizada]
ou “arqueologia” mural, como alguém lhe chamou


Hoje damos uma vista de olhos ao trabalho deste original artista português:

Alexandre Farto ou Vhils



Visite a sua página Web

quinta-feira, 19 de julho de 2012


Os Prazeres do Ócio

Gosto de companhia, gosto de tagarelar e que tagarelem comigo. Adoro deixar-me ficar sentado à volta de uma mesa e de me deixar envolver de tal forma no momento, que perco a noção do tempo, até alguém dizer com surpresa: já são duas!!

Tom Hodgkinson (2005). Os Prazeres do Ócio

Fonte: escrito numa das paredes do Restaurante/Bar/Bistro Quotidiano (Alcântara, Lisboa)
Páginas Paralelas:

Porque as férias se aproximam, e porque as férias convidam ao ócio... e à leitura...

The Idler, a revista criada pelo britânico Tom Hodgkinson em 1993

Tom Hudgkinson on idleness (video)

Some essays from The Idler, by Samuel Johnson (1709-1784)

Bertrand Russell (1932). “In Praise of Idleness” (audio)

Bertrand Russell (1932). “In Praise of Idleness” – transcript

Excerpt: “In a world where no one is compelled to work more than four hours a day, […] teachers will not be exasperatedly struggling to teach by routine methods things which they learnt in their youth, which may, in the interval, have been proved to be untrue.”

And he finishes his reflection this way: “Modern methods of production have given us the possibility of ease and security for all; we have chosen, instead, to have overwork for some and starvation for others. Hitherto we have continued to be as energetic as we were before there were machines; in this we have been foolish, but there is no reason to go on being foolish forever.”
[this in 1932…]

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Lindstrom.“65% das marcas que compramos em adulto foram decididas aos 6 anos”

Por Vanda Marques,
ionline, 3 Jul 2012

Investigador, marketeer, consultor e um dos maiores gurus do branding, o dinamarquês Martin Lindstrom foi considerado pela revista “Time” uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. O autor tem um novo livro e conversou com o i sobre como as marcas nos fazem lavagem ao cérebro
Aditivos na comida, nos batons e sentimentos de culpa. Vale tudo. O marketing é um assunto sério e Martin Lindstrom, publicitário dinamarquês, que trabalhou na Disney, PepsiCo, McDonalds e Microsoft, conta como é que as marcas nos andam a dar a volta. O livro “Brandwashed – Os Truques de Marketing que as Empresas usam para Manipular as Mentes” pode assustá-lo, mas é uma chamada de atenção para a forma como consumimos. Depois de ter estado um ano em celibato de marcas, Martin Lindstrom, eleito em 2009 uma das 100 pessoas mais influentes no mundo pela revista “Time”, quer tornar-nos mais conscientes. Em entrevista ao i explicou que é fácil reduzir as compras irreflectidas. Podemos começar por coisas tão simples como usar dinheiro e não o cartão e ouvir música que não gostamos: vai comprar menos 19%.

No livro diz que as nossas preferências por marcas surgem quando somos crianças. Como é possível?
Há algumas marcas que nos influenciam até quando estamos na barriga da mãe?

Isso acontece porque somos influenciados pelo sabor da comida ou pelos sons quando ainda estamos no útero. Estes sons criam-nos predisposições para certas coisas, como por exemplo música e até preferências de sabores. As marcas vão se tornando cada vez mais sofisticadas e começamos a ver como criam sons e sabores para chegarem ao útero. Assustador. Não são muitas as que fazem isto, mas há algumas que revelo no meu livro.
Quer dizer que somos viciados em marcas?

Sim, somos. As marcas dão-nos uma sensação de confiança e quanto mais pressionados nos sentimentos, mais confiamos nas marcas. Hoje sabemos que os jovens ficam mais viciados em marcas quanto menor é a sua autoconfiança e pelo caminho vão comprar ainda mais. Cerca de 70% dos miúdos sentem pressão na escola para vestir as marcas certas. É como um uniforme, ou usas o cool ou não fazes parte da tribo.
Como é que as empresas nos fazem uma lavagem ao cérebro?

Este é o meu sexto livro, depois de trabalhar durante 25 anos com marcas em todo o mundo, penso que é importante que os consumidores saibam o que se passa nos bastidores das empresas e ao mesmo tempo pressioná-las para que ponham a casa em ordem. Podemos dizer que todos achamos que somos imunes à publicidade, mas descobri – em parte porque fiz as minhas próprias experiências quando estive na desintoxicação de marcas – que não conseguimos viver sem marcas. Ainda mais importante é que quando acreditamos que somos imunes é quando estamos mais susceptíveis. A mensagem do meu livro é para que as pessoas tomem consciência do que se passa e se tornem consumidores informados e não ingénuos.
Quais são os principais truques utilizados pelas marcas para nos manipular?

Medo e culpa. Ao incutir medo em todas as mensagens somos 10 vezes mais capazes de escolher qualquer oferta que haja por aí. O medo de envelhecermos, engordarmos, ficarmos sozinhos, ser impopulares, ter uns filhos falhados. A culpa é um vírus em crescimento, principalmente entre as mulheres. Como forma de remover alguma dessa culpa, as marcas oferecem “soluções” – muitas vezes soluções que não resolvem nada. A culpa pode ser desde “não sou uma boa mãe”, a ter “problemas com o meu corpo”, a “não sou uma boa mulher”. E a ideia é: compra a marca X e vais ser feliz.
Mas como é que se mantém essa relação com a marca? Uma coisa é um impulso, uma vez.

Ao copiar o consumidor e as suas necessidades e ao criar uma imagem aspiracional, da qual gostaríamos de fazer parte. Deixa-me explicar: quando sentimos que a pessoa com quem estamos a falar realmente nos entende, vamos ouvi-la e aceitar os seus conselhos. Em segundo lugar, se for alguém que admiramos que queremos ser como ela ou segui-la. Estes são os fundamentos das marcas.
As marcas também criam necessidades que não temos, objectos que nem precisamos. Como é que o conseguem?

Vêm-me à cabeça uma tonelada de formas, umas boas e outras menos apelativas. Por exemplo, a Apple. Muitas pessoas amam a marca, é fácil de usar, tem um design incrível e é inovadora. No entanto, nos bastidores há muito mais a acontecer. Quando compras um produto da Apple ficas, de certa forma, preso. A Apple só funciona com a Apple. Só o iTunes funciona, só um staff autorizado da Apple pode abrir e mudar a bateria do teu iPod. Além disso, a marca cria uma segunda camada de necessidade, ou seja, precisamos de estar sempre a comprar o último modelo. Se não tens o iPhone 4S sentimo-nos um fracassado. Uma necessidade pode ser criada de várias maneiras.
Para o livro estudou várias marcas. Qual foi a que mais o surpreendeu?

De longe, a Carmex. É uma marca de batons que tem aditivos. Claro que a empresa argumenta que é mentira mas depois de inúmeras investigações e entrevistas com especialistas é óbvio que tem de existir um pouco de verdade aqui, porque quem começa a usar batons da Carmex não consegue parar.
No livro fala ainda de snacks e chocolates que têm substâncias viciantes. As empresas não acham que isso é ir longe de mais?

Algumas sim, outras não. Não preciso de dar exemplos como os cigarros, o álcool, talvez a moda, os produtos farmacêuticos, sem esquecer a moda dos upgrades dos gadgets. O vício tem dimensões muito diferentes.
Na publicidade aparecem muitas celebridades. Isso ajuda a vender?

Claro, e cada vez mais porque precisamos de líderes na nossa sociedade. Como já não confiamos nos políticos e as famílias reais são limitadas – a próxima geração de famílias reais são celebridades – precisamos de alguém em quem confiar, seguir e admirar para ganharmos autoconfiança.
Então quer dizer que sempre que compramos não o fazemos de forma racional?

Sabemos hoje que 85% das nossas decisões são tomadas inconscientemente, ou seja, feitas sem a nossa percepção. As marcas vivem nesse espaço, porque resumem-se a sentimentos.
Como é podemos ser consumidores mais inteligentes e menos ingénuos?

Arrisco-me a dizer, fora de brincadeiras, que será ao lerem “Brandwashed”. Mesmo assim, aqui ficam alguns conselhos:
1. Pagar em dinheiro. Ao pagar em dinheiro garantimos um relacionamento seguro e real com o dinheiro e dessa forma gastas menos. Na nossa experiência houve uma redução de 11%

2. Usar o iPod (ou outro gadget parecido) com música muito alta, de preferência uma que não gostes. Isto vai ajudar a cortar o lado mais sedutor das compras e assim compras menos coisas, cerca de 19%
3. Nunca leves as crianças às compras, elas fazem com que compres mais, um aumento de cerca de 26%

4. Deves comer antes de ir às compras, vai fazer com que compres muito menos, não apenas comida. Reduz cerca de 22%.
5. Nunca uses um carrinho de compras, é preferível carregares as compras nos braços. Nos últimos cinco anos o tamanho dos carrinhos de compras duplicou, o que gerou um aumento de 40% nas compras.

Porque decidiu trabalhar em marketing?
Adoro marketing. Trabalho em publicidade desde os 12 anos, quando comecei a minha própria publicidade. Quando tinha 8 anos só via anúncios televisivos e apagava a televisão quando os programas começavam.

O que o atrai na publicidade?
A psicologia e a capacidade incrível para fazer alguma coisa boa de forma poderosa. Por exemplo, uma campanha anti-tabagismo ou contra a condução sob o efeito de álcool.

Trabalhou com a McDonalds para criar uma imagem mais saudável na Europa, como a mudança para a cor verde. Como foi?
Uma das minhas condições para aceitar trabalhar com a McDonalds foi a criação de um novo e mais saudável Happy Meal. Criámos alguns conceitos incríveis que ainda hoje existem.

Durante um ano viveu sem marcas. Como correu a experiência?
Foi estranho, duro e divertido. Deixei de consumir marcas simplesmente porque... bem, estava viciado. Preciso de dizer mais alguma coisa? Quero dizer, sou um brand guy viciado no meu próprio medicamento. Irónico, não?

terça-feira, 17 de julho de 2012

Na fila de supermercado

José Vítor Malheiros

[…]
Uma fila de supermercado é uma colecção de histórias e há umas que parecem mais prometedoras do que outras. Mas nem todas são agradáveis. Nos últimos meses, as filas de supermercado contam histórias tristes.
A fila que escolhi hoje é pequena. À minha frente, está uma mulher de uns 30 ou 40 anos, elegante, com um olhar vivaz e um sorriso inteligente […] que leva meia dúzia de compras na mão […]. Está vestida com um tailleur saia-e-casaco e sapatos pretos de salto, formais, certamente por necessidade profissional. Pousa as compras no tapete e murmura qualquer coisa à empregada. Percebo que lhe pede para ir fazendo subtotais, à medida que vai registando as compras. Há vários iogurtes mas estão separados, em vez de estarem num conjunto de quatro, como na prateleira. A caixa passa várias compras e quando o subtotal atinge 3 euros e 73 cêntimos a cliente diz “está bem assim”. No tapete fica um iogurte natural e um pacote de bolachas da marca do supermercado que a caixa põe de lado num gesto rápido, numa pilha heteróclita onde há outros restos de compras. A mulher paga os 3,73 euros com Multibanco.
Esta história é sobre uma mulher elegante de 30 ou 40 anos, com um sorriso inteligente, que trabalho num sítio onde lhe exigem que vista com alguma formalidade e que só tem quatro euros no banco.

José Vítor Malheiros (03 julho 2012). Na fila de supermercado. Público. p. 49. [excerto]


segunda-feira, 16 de julho de 2012

Há-de experimentar, se fizer favor, fazer um chá como fazem os ingleses

Miguel Esteves Cardoso
Na ponta da língua

[…]
Falo do chá à inglesa. O chá é preto e pode ser tomado com leite. A altura ideal é o afternoon tea, entre as três e meia e as cinco da tarde, conforme a hora a que se almoçou.

É a refeição mais encantadora porque é roubada ao dia. Sentamo-nos à volta de uma mesa e bebemos chá acompanhado consecutivamente por sanduíches delicadas, scones com nata grossa e compotas e fatias de bolos simples, como Madeira cake.
Continue a fazer o chá como faz. Mas um dia, para variar, experimente fazê-lo como fazem os ingleses que sabem fazer chá. Beberá um chá como nunca bebeu antes. Até pode ser que goste e nunca mais seja capaz de beber o outro.

Em 1946, Orwell publicou os onze mandamentos do chá – ponha “a nice cup of tea by George Orwell” no Google que vai logo lá dar – dos quais nove ainda se recomendam.
O chá tem de ser ortodoxo, solto, de folha inteira e puro, sem aromatizantes de qualquer espécie. […] Não pode ser o chá triturado e esmigalhado, chamado CTC (“Crush, Tear, Curl” diz tudo), que é pulverizado para caber em saquetas e para fazer pseudo-chá mais depressa e barato.

[…]
Há bons chás ortodoxos de Ceilão de folha inteira (sem a inicial B de broken, a seguir ao nome). […]

Se quiser fazer a experiência por custo mínimo, compre um pacote do agradável chá Gorreana, produzido sem pesticidas na ilha de São Miguel. Tem dois de folha inteira: o Orange Pekoe e o Gorreana preto. […]
Agora já tem o chá. Falta fazê-lo e servi-lo. É aqui que tem de fazer tudo direitinho.

Precisa de um bule de porcelana, de uma peneira e de um jarro para a água quente. Precisa também de chávenas de chá, de pires e de uma leiteira.
A água tem de ser filtrada: a da torneira tem calcário a mais. O melhor sistema é o da Brita. Encha a chaleira eléctrica (a mais inglesa é de alumínio, com tampa preta, da Morphy Richards) de água filtrada. Tenha, mesmo ao lado, o bule, a medida de chá (duas colheres de sopa, bem cheias, para um bule de litro) e – a maior inglesice de todas – um jarro para a água fervida.

Quando a água estiver quase a ferver (tem de aprender a tocar de ouvido), escalde o bule. Deite-lhe água e espere até o bule queimar-lhe os dedos. Entorne-a para o jarro de água quente. Quando a chaleira der o clique que diz que “já ferveu”, deite-a imediatamente, logo a seguir ao chá que acaba de verter para o bule.
Marque três minutos. Ao fim de três minutos, deite um pouco de leite nas chávenas (antes e não depois, ao contrário do que diz Orwell, erradamente, por julgar que deitamos sempre leite de mais), dê uma volta no bule com uma colher comprida e sirva o chá através de uma peneira.  Mal tenha acabado de servir as primeiras chávenas, destape o bule e deite-lhe o equivalente em água quente, dando mais uma volta com a colher.

É este o segredo inglês […].  Sem a água acrescida, o chá “foge”, tornando-se adstringente e volátil. A água quente prende o chá e fixa-o durante mais meia hora: a meia hora do lanche, necessária para lanchar como deve ser. Se beber menos de três chávenas, é porque não fez bem o chá.
[…]

O bom chá inglês é mesmo assim: bom chá, boa água, bom resultado.
O resto é extravagância, trabalho escusado e despesa estúpida.

Miguel Esteves Cardoso (17 março 2012). Há-de experimentar, se fizer favor, fazer um chá como fazem os ingleses. Fugas – Público, p. 3.









quarta-feira, 11 de julho de 2012

Carlos Drummond de Andrade, "Poema-orelha"

Esta é a orelha do livro
por onde o poeta escuta
se dele falam mal
ou se o amam.
Uma orelha ou uma boca
sequiosa de palavras?
São oito livros velhos
e mais um livro novo
de um poeta ainda mais velho
que a vida viveu
e contudo provoca
a viver sempre e nunca.
Oito livros que o tempo
empurrou para longe
de mim
mais um livro sem tempo
em que o poeta se contempla
e se diz boa-tarde
(ensaio de bom-noite,
variante de bom-dia,
que tudo é o vasto dia
em seus compartimentos
nem sempre respiráveis
e todos habitados
enfim.)
Não me leias se buscas
flamante novidade
ou sopro de Camões.
Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto
em vítreos alçapões
são notícias humanas,
simples estar-no-mundo,
e brincos de palavra,
um não-estar-estando,
mas que tal jeito urdidos
o jogo e a confissão
que nem ditongo eu mesmo
o vivido e o inventado.
Tudo vivido? Nada.
Nada vivido? Tudo.
A orelha pouco explica
de cuidados terrenos;
e a poesia mais rica
é um sinal de menos. 

Fonte: http://www.astormentas.com/PT/poema/10952/Poema-orelha

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Beirut 

Nantes | Take-Away Show



Beirut (2007). "Nantes". The Flying Club Cup.

Páginas Paralelas:

Página MySpace de Beirut

Ler mais sobre este Take Away show aqui

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Fernando Pessoa

O menino da sua mãe


No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.


Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.


Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».


Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.


De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.


Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

Fonte: Fernando Pessoa (1995). Poesias. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática. p. 217. Disponível  em: http://arquivopessoa.net/textos/2052 (consultado a 2 de Julho de 2012).

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Teolinda Gersão

Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.


Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa


Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço? 
A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros. 
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? 
Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.
João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática).


Teolinda Gersão, junho, 2012


Fonte: Teolinda Gersão (11.06.2012). Redacção: Declaração de Amor à Língua Portuguesa. Observatório da Língua Portuguesa. Disponível em: http://observatorio-lp.sapo.pt/pt/noticias/teolinda-gersao (consultado a 2 de Julho de 2012).

terça-feira, 3 de julho de 2012

Joaquim Letria


O Natal do Pai Natal



Pensei que não se falava assim ao Pai Natal, mas o homem repetiu, para que não me restassem dúvidas:
— Se voltas a sair daqui da porta, apanhas uma palmada!
O Pai Natal ficou meio amuado, meio medroso, como todos os miúdos a quem se promete pancada. Segurando os três balões de cores diferentes na mão esquerda, agitou violentamente o sino com a mão direita, de modo a se fazer ouvir por cima do barulho daquela rua comercial.
Por debaixo do fato vermelho e do algodão branco das barbas, o Pai Natal não tinha para mais de doze anos e muito menos para apanhar uma palmada. Se em vez de Natal estivéssemos no Carnaval, qualquer pessoa pensaria que se tratava dum miúdo mascarado.
Ó filho, não vês que é um Pai Natal a fingir?  disse uma mãe a um filho mais incrédulo, mas não tanto que deixasse de acreditar que todos os anos há um senhor com um trenó carregado de prendas puxado por renas, que vem do Norte despejar presentes pelas chaminés.
A voz tonitruante, ameaçadora, do comerciante lembrava a todos os que passavam que vivíamos o auge da grande saison da paz e do amor:
Pago-te para estares aqui à porta não é para andares a passear por aí. Se te apanho outra vez a afastares-te, não te pago e corro-te a pontapés!
                Aquele fato era, nitidamente, maior do que o corpo que o não enchia, o que se poderia atribuir ao planeamento correcto dum comerciante moderno que vestia o seu Pai Natal com roupa suficientemente grande para permitir o seu crescimento.
Não se percebia a razão pela qual o dono da loja não havia escolhido um Pai Natal à medida, mas também isso certamente se poderia ficar a dever a uma análise e estudo aprofundados de custos e benefícios, pois sem dúvida que um Pai Natal mais pequeno deveria sair mais barato e fazia o mesmo efeito.
Ó mãe, deixa ver o Pai Natal.
Nessa altura, o Pai Natal dava ao sino, olhava para o outro lado da rua e afastava-se um pouco. Ao vê-lo assim proceder, era difícil não concluir que o Pai Natal tinha vergonha.
Ó mãe, o Pai Natal é um menino como nós?  perguntou uma menina.
Ó filha, não! Não vês que este é um Pai Natal a brincar?
Debaixo das barbas, o Pai Natal teve um sobressalto e olhou espantado. A brincar?! Das nove da manhã às sete da noite, de badalo e balões nas mãos, quer chovesse quer fizesse sol, durante uma semana inteirinha, era brincar? O Pai Natal não concordava. Parou de dar ao sino, enquanto a outra mão, vermelha das guitas e do frio, deixava fugir um balão que subiu até se perder de vista por cima dos prédios, arrastado pelo vento.
Ó mãe, olha um balão do Pai Natal....
A pouco e pouco, o Pai Natal estava de novo longe da porta da loja a que pertencia, e junto do cigano que vendia pistolas à cowboy, com um cesto poisado à beira do passeio.
Era um velho cigano, todo vestido de preto, com um grande bigode branco que tinha uma grande mancha amarela de tabaco. Olhou o Pai Natal, riu, e disse numa voz profunda:
Queres uma? Eu dou-te. Toma lá uma, para tu brincares.
Naquela noite, quando os meninos estavam já todos de pijama, depois de tomarem banho antes do jantar, houve quem visse um Pai Natal, com a barba de algodão branco a esvoaçar, presa por um elástico ao pescoço, andar pendurado nos tróleis e nos autocarros, a dar tiros para o ar com uma pistola de fulminantes.
E os meninos, muito penteadinhos, nos seus pijaminhas quentinhos, ficaram muito assustados quando as mamãs lhes disseram:
Se não comes a sopa, chamo o cigano e digo ao Pai Natal para não te dar nada..
Se os meninos conhecessem esta história, tinham rido a bandeiras despregadas e pedido para nunca mais ninguém escrever contos de Natal.

Joaquim Letria (1987). O Natal do Pai Natal. In Histórias para Ler e Deitar Fora. Lisboa: Círculo de Leitores. pp. 197-199.